AGRICULTURA ORGÂNICA E MERCADO
-algumas considerações-
Laércio Meirelles [1]
Introdução
Este texto tem o objetivo de traçar algumas considerações sobre o denominado mercado de Produtos Orgânicos.
Parte de um breve comentário sobre as diferentes visões de mercado e passa por uma análise da comercialização de Produtos Orgânicos. Critica tanto a opção de se estimular a Agricultura Orgânica unicamente através da criação de um nicho de consumo diferenciado, quanto o fato de princípios deste movimento estarem sendo deixados de lado em função de supostas “exigências de mercado”.
Propõe que a Agricultura Orgânica seja incentivada exatamente por seus méritos intrínsecos, e que, nesta ótica, busquemos alternativas de mercado que sejam coerentes com os ideários que sempre nos motivaram.
O Mercado
O movimento de Agricultura Orgânica não pode se eximir de debater o papel que deve desempenhar o mercado em nossa sociedade.
Não nos cabe aqui fazer nenhuma análise detalhada sobre este assunto, mas apenas salientar que, basicamente, duas visões se contrapõem quanto se discute o mercado. A primeira, hoje hegemônica, vê o mercado como autorregulado, como uma variável independente cuja racionalidade domina todas as instâncias da vida social. A partir desta mão invisível, toda sociedade se organiza política e socialmente, respeitando leis que, por inquestionáveis, se sacralizaram, tornando-se uma verdade absoluta. A segunda coloca o mercado não como um ente a parte, tampouco como criador, mas sim fruto de uma construção político-social[2]. Dentro desta perspectiva, o mercado e suas regras não são uma realidade absoluta, a qual devemos nos moldar, mas, sim, um conjunto de relações historicamente construídas, que tanto podem dominar como ser dominadas por outras práticas sociais.
Faço esta breve introdução para salientar uma constatação que nossa prática no mercado de Produtos Orgânicos tem referendado: no período mais recente, a maior parte dos envolvidos no movimento de Agricultura Orgânica tem, deliberadamente ou não, abandonado os princípios éticos, políticos e sociais que inspiraram o movimento em sua origem, assumindo a lógica do mercado como criador.
Esta linha se cristaliza quando vemos muitos afirmarem que o mercado é o grande impulsionador da Agricultura Orgânica. Que só a partir de um mercado diferenciado os agricultores se motivam a fazer a transição entre o atual modelo tecnológico e um modelo mais sustentável. Há outra conduta que torna ainda mais visível este excessivo apreço pelas “leis de mercado”: quando nos sentimos obrigados a abrir mão de alguns dos princípios que de uma ou outra maneira sempre permearam as discussões que deram origem a este movimento. Abrimos mão porque acreditamos que o mercado não os comporta.
O mercado de Produtos Orgânicos
O crescimento vivenciado pelo movimento de Agricultura Orgânica nas últimas décadas é inegável. As razões que propiciaram este crescimento são as mais variadas, mas sem dúvida a ampliação do mercado desempenhou um papel muito importante.
Dentre as diferentes vertentes que compõem este movimento há uma parcela significativa que encontra no mercado a mola mestra ou a grande fonte de motivação para o seu crescimento, passado e futuro.
Sob este ângulo, o crescimento do mercado tem sido usado como um argumento poderoso, na intenção de convencer agricultores, técnicos e demais envolvidos, sobre as vantagens em se mudar o padrão tecnológico na agricultura.
Nesta linha de raciocínio muito tem sido falado sobre o crescimento do mercado. Mais ainda quando se refere ao mercado potencial. Ou às suas possibilidades de crescimento.
Mas o que esta de fato acontecendo hoje com o mercado de Produtos Orgânicos? Qual sua real dimensão? O que se entende exatamente por mercado potencial?
Quando se trata de analisar o mercado de produtos orgânicos, uma primeira grande distinção a ser estabelecida refere-se às diferenças existentes entre a organização da produção, distribuição e consumo de Produtos Orgânicos nos países do Norte, e a realidade existente nos países do Sul, mais especificamente na América Latina. No Brasil e nos países do Sul, de modo geral, este é um mercado incipiente, em formação e pouco normatizado. Estabelecer números é não mais que uma estimativa. Dados mais precisos podem ser encontrados para os países do Hemisfério Norte. Nos EUA, por exemplo, no ano de 1997, alcançou-se um volume de vendas de 4,2 bilhões de dólares, equivalente há 2,5% do mercado nacional de alimentos. Na Alemanha, primeiro país do mundo a se criar um mercado diferenciado para “produtos limpos”, o mercado, neste mesmo ano, foi de 2,5 bilhões de dólares, equivalente a 1,5% do mercado de alimentos. Estes números tem sido freqüentemente usados para demonstrar a força e o potencial deste mercado.[3]
O fato é que por diferentes interesses este mercado tem constantemente sido alvo de projeções otimistas. Os que buscam argumentos para aumentar o número de adeptos se unem aos que vêem neste mercado uma fonte de lucros. Estas projeções, feitas pelos próprios interessados por um ou outro motivo, têm considerável dose de ufanismo. Em outras palavras, seja por interesse econômico ou no intento de se buscar a divulgação de uma proposta eco-social, tem havido um exagerado otimismo nas projeções que há anos se faz deste mercado.[4]
Mas a realidade não tem confirmado estas projeções. O que se pode observar é que o mercado de Produtos Orgânicos tem crescido sim, mas não como o estimado há alguns anos. As causas possíveis para este crescimento em taxas cada vez menores parecem girar principalmente em torno do preço final. É comum hoje achar nas prateleiras Produtos Orgânicos com um sobre preço de 20, 30, até 150% em relação ao similar convencional. Na outra ponta o produtor recebe de 10 a 50% a mais por sua produção.
Mas vale lembrar que uma série de outras variáveis, além das econômicas, interfere na ampliação do consumo de Produtos Orgânicos, como, por exemplo, o perfil social, cultural e a faixa etária do consumidor. O público que consome Produtos Orgânicos pode ser, hoje, dividido basicamente em dois perfis. O primeiro composto por intelectuais bem informados que fazem esta opção por vontade de colaborar com a busca de um planeta mais eqüitativo social e ambientalmente. O segundo de pessoas preocupadas com a própria saúde e que percebem uma correlação entre esta e a alimentação. Neste se destacam a presença de mães jovens e pessoas de mais idade. Há um consenso sobre a necessidade de ampliar o perfil do consumidor de produtos orgânicos, ou corre-se o risco de estagnação deste mercado.
Claro que também há uma série de dificuldades inerentes ao fato de ser um mercado em formação. Transformação de produtos primários em escala muito artesanal, dificuldades tecnológicas, canais de distribuição precários, poucos pontos de venda.
O fato de não crescer como projetado tem gerado insatisfações, particularmente entre os agricultores que foram “seduzidos” por estas mesmas projeções. Ainda mais porque com o aumento da oferta de alguns produtos, já há uma pressão de baixa nos preços dos produtos orgânicos. Isto nos leva a concluir que a estratégia de incentivar junto aos agricultores a prática da Agricultura Ecológica a partir da possibilidade de se conseguir melhores preços em um mercado diferenciado deve ser melhor avaliada.[5]
Para quem percebe o movimento de Agricultura Orgânica como um instrumento para mudarmos não só a base tecnológica na agricultura, mas também sua realidade econômica, política, social e ecológica é um equívoco apostar no mercado como o principal motivador deste processo.
A erosão de princípios
A perspectiva de ter o mercado como um dos pontos para o incentivo da prática da Agricultura Orgânica foi distorcida para um extremo onde muitos hoje acreditam que esta só se justifica em função daquele. Isto fez com que nos últimos 10 anos tenha crescido o que poderíamos chamar de Agricultura Orgânica de mercado. Uma forma de perceber a Agricultura Orgânica muito mais em função das “regras” ditadas pelo mercado do que pelos ideais que sempre foram inerentes a este movimento. Um entendimento de que a Agricultura Orgânica teria que subordinar seus princípios e valores às exigências do mercado supostamente auto-regulado.
O interessante do momento no qual que vivemos é que o próprio mercado tem demonstrado que estas opções, que afastaram o movimento de algumas de suas “plataformas iniciais”, foram equivocadas do ponto de vista comercial. Por uma feliz coincidência o que há alguns anos era uma “questão ideológica”, portanto “pouco prática”, hoje se mostra também a decisão mais acertada comercialmente.
Assim que, ao longo da última década, o princípio de “dar prioridade ao abastecimento do mercado interno” foi substituído pelo canto de sereia do mercado de exportação. A produção de alimentos de qualidade para a população como um todo deu lugar a sedução dos preços altamente diferenciados. O discurso da independência do agricultor ficou obsoleto diante da “necessidade” da certificação.
Hoje, a exportação de produtos orgânicos é uma estratégia que tem sido questionada. As dificuldades burocráticas, a falta de controle do produtor sobre a circulação de seu produto, o custo desta mesma circulação e as dificuldades com a própria certificação tem indicado a necessidade de se buscar o desenvolvimento de mercados locais e regionais. Não se trata de ignorar a exportação, mas de não vê-la como a única ou sequer principal opção.
Os preços diferenciados têm sido apontados por muitos como uma armadilha criada pelo próprio movimento. Os agricultores hoje raramente abrem mão de um “prêmio” [6] que valorize seus esforços. E o crescimento do mercado tem dado sinais de um precoce arrefecimento. A causa principal parece estar exatamente nestes preços diferenciados.
As estruturas de certificação também têm sido cada vez mais questionadas. Por duas razões. A primeira, mais pragmática, diz respeito aos preços cobrado pelas certificadoras. Aos custos, que beiram o absurdo dentro da realidade dos países do sul, soma-se o fato de que determinados compradores exigem certas certificadoras. Esta relação de confiança entre um comprador e a “sua” certificadora leva a situações surrealistas: produtos que são certificados por 4, 5 ou 6 diferentes empresas por exigências de diferentes importadores.
A outra razão pela qual se questiona as empresas de certificação é pela metodologia sobre a qual foi pensado o processo de certificação. Segundo o depoimento de um agricultor do sul da Alemanha, que já foi certificado por uma importante certificadora mas desistiu em função da burocracia e do custo, “no início éramos agricultores biológicos e fazíamos força para sê-lo. Hoje basta cumprirmos as normas. Além disso, nos sentimos mal como potenciais infratores”. Ou seja, uma metodologia que não guarda correlação com alguns dos princípios fundamentais da Agricultura Ecológica, quais sejam os da independência do agricultor e de suas organizações, da participação deste em todos os processos que lhe dizem respeito e principalmente do resgate do prazer de ser agricultor.
No momento atual o que podemos observar é uma reversão destas tendências. Não por desejo de recuperar os princípios perdidos no mar revolto do mercado livre. Tão pouco por resgatar valores que, dizem, já não se adequam à sociedade contemporânea. Como já dissemos, o fato é que o mercado de exportação já não se mostra tão sedutor. A estratégia de preços diferenciados para a produção orgânica tem sido apontada como uma das causas da desaceleração do crescimento deste mercado. A certificação encontra resistências crescentes tanto por parte dos agricultores quanto por parte dos próprios consumidores. E o mercado não cresce como o projetado...
Em outras palavras, o fato de que vários dos ideais que sempre permearam as discussões sobre Agricultura Orgânica estarem sendo deixados de lado, tem se mostrado, além do aspecto de perdas de valores ideológicos, equivocado também no que diz respeito às estratégias de desenvolvimento de mercado.
O retorno à motivação inicial
A perspectiva, de incentivarmos a produção orgânica de alimentos a partir de um mercado diferenciado já dá sinais de cansaço. Não tem adiantado sequer nos “adaptarmos” a ele. Está cada vez mais claro que a Agricultura Orgânica deve ser promovida muito mais em função de seus méritos intrínsecos. Podemos recordar alguns deles:
1) Baixa ou nula pressão sobre recursos naturais não renováveis
2) Agricultura como fonte de energia.
3) Resgatar o protagonismo do agricultor na organização do seu processo produtivo.
4) Tecnologias mais transparentes, passíveis de serem socializadas.
Não que devamos ignorar a possibilidade que a Agricultura Orgânica hoje nos dá de criarmos um mercado diferenciado. Mas este “mercado diferenciado” deve ser visto muito mais como um exercício, com vistas a nos possibilitar a criação de canais alternativos de circulação das mercadorias, do que um fim em si mesmo.
São estes chamados canais alternativos que nos possibilitam a construção de um espaço de troca de mercadorias que seja pautado:
ü Pela diminuição dos elos da cadeia que separam o produtor do consumidor;
ü Por transparência nas negociações;
ü Por privilegiar a lógica da solidariedade e complementaridade em detrimento da lógica da competição e exclusão;
ü Pela criação de estruturas de mercado que privilegiem a população como um todo, e não grupos de interesse;
ü Pelo conhecimento mútuo entre os agentes que participam, em detrimento do anonimato.
Devemos acreditar ser possível, em nossas relações cotidianas que envolvem trocas de mercadorias, colocar como ponto de partida estes valores de transparência, solidariedade, complementaridade, benefícios compartilhados. Tornando o mercado um instrumento para satisfação de nossas necessidades e não um ente invisível ao qual temos que nos submeter.
Ipê, setembro de 1998.
[1] Engenheiro Agrônomo. Coordenador do Centro Ecológico de Ipê, ONG que há 13 anos assessora agricultores em Agricultura Ecológica.
[2] Para aprofundar este assunto, ver: Polany, Karl - La Gran Trasnformacion, 1944, ediciones de La Piqueta - Madrid, 1989.
[3] Estes números, bem como a afirmação de força deste mercado podem ser encontrados na revista da Biofair-98, edição de 14 de janeiro de1998, em um artigo intitulado “El milagro econômico Ecológico” e na Gazeta Mercantil de 13 de março de 1998.
[4] Sabemos do controvertido que é esta afirmativa. Não se trata de ignorar o crescimento que o mercado de produtos orgânicos vem tendo. Mas sim que este crescimento não acontece como o projetado. Como exemplo, em 1990 se projetava para o ano 2000 na Alemanha uma fatia de mercado para os Produtos Orgânicos de 10% (Coopers und Lybrand Deloitte, citados por Buley em uma publicação intitulada “Exportar produtos ecológicos” Protrade, 1997). Hoje, pelos dados que apresentamos, vemos que estes números dificilmente se concretizarão.
[5] Muito podem argumentar que nos EUA realmente tem havido um boom de crescimento. Mas seguimos afirmando que não como o projetado. Um estudo de Rodale, feito em 1994, constata que 87% dos consumidores estariam dispostos a comprar Produtos Orgânicos desde que com preços iguais ao produto convencional. Com um sobrepreço muitas vezes superior a 50%, o propalado potencial não se materializa. Lembramos que no final de 1997, o departamento de agricultura dos Estados Unidos -USDA-, estabeleceu novos parâmetros para alimentos orgânicos. Segundo a revista “The Ecologist”, número 28, de julho/agosto de 1998, estes parâmetros conferem aos EUA o mais baixo padrão orgânico do mundo. Talvez este seja o caminho encontrado para confirmar as projeções otimistas.
[6] “Prêmio Orgânico” é definido como o diferencial de preço entre o produto orgânico e o similar convencional.
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