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sexta-feira, 23 de setembro de 1994

Certificação e Dominação



Certificação e Dominação

      Laércio Meirelles [1]

  
A independência
       Quando falamos em agricultura ecológica há certo consenso de que fica implícita a independência do agricultor. Na verdade o objetivo é buscar um modelo de desenvolvimento onde o agricultor tenha garantido seu espaço de representação política e reprodução social. Para isso é necessário que a agricultura se torne independente do complexo industrial que a comprime.
           Por este motivo quando adotamos determinada tecnologia temos a preocupação de que esta seja passível de ser apropriada pelo agricultor. Entendendo que dominando a tecnologia, e não sendo dominado por ela, o agricultor terá dado um importante passo no sentido de ser “agente de seu próprio desenvolvimento”. Importante mas não suficiente. É preciso que, também em outros momentos de seu processo produtivo, esta visão de independência esteja presente. Como na comercialização, por exemplo.
        É importante que as entidades que se propõe a trabalhar com os agricultores neste campo das tecnologias alternativas, juntamente com os próprios, consigam criar mecanismos para que o agricultor tome ciência do que se passa com sua produção, fora dos limites da sua propriedade. E então o agricultor poderá tomar sua própria decisão, de participar ou não das diferentes etapas da comercialização.
       Baseado nestas premissas, podemos entrar no tema que nos motivou a escrever este artigo: a certificação de produtos orgânicos. Não nos parece que a certificação é uma seqüência natural nos processos descritos acima. Com certeza ela não é mais uma tecnologia desenvolvida no sentido de buscar que o agricultor seja protagonista de seu processo produtivo. Ao contrário, da forma como vem sendo proposta, a certificação poderá ser um freio decisivo neste processo de resgate do agricultor como sujeito de seu próprio desenvolvimento.
      Vejamos o porque: Visualizemos uma propriedade onde a Agricultura Ecológica é praticada.  Temos agora um agricultor que dialoga com a natureza. Que não só utiliza, mas é capaz de gerar tecnologias adaptadas e sãs. Que busca de alguma maneira se organizar com seus companheiros e discutir, conjuntamente, seus problemas diários e as suas soluções. Que procura industrializar sua produção de forma artesanal e autárquica. Que tenta conhecer o mercado e eliminar os elos da cadeia que o separam do consumidor. Mas apesar de todas estas conquistas ele tem que ser certificado para cumprir a ultima etapa da sua jornada. Sem dúvida, um contrassenso.

 A dominação

         A certificação, tal como se apresenta hoje, tem sua origem em dois fatos: o primeiro é que a comercialização de produtos orgânicos vende algo que não se enxerga: o alimento puro, livre de resíduos tóxicos. O segundo é que se entendeu, e alguns entendem até hoje, que era necessário um sobre-preço pelo fato deste alimento ser limpo.
        Dentro desta lógica surgiu a necessidade de, de alguma forma, garantir ao consumidor que ele realmente comprava o que esperava comprar. E a forma que se escolheu foi equivocada, ao menos no que diz respeito a autonomia do agricultor. Neste momento se entendeu que os agricultores não teriam isenção para garantir a idoneidade de sua própria produção. Que seria necessária a criação de estruturas que fiscalizassem o trabalho destes agricultores. E certificassem sua produção. Estas estruturas têm um custo que onera o preço final do produto para o consumidor e/ou achata o preço que o agricultor recebe.
      O fato é que hoje está longe de ser um consenso a “necessidade” de o produto orgânico ser mais caro do que o chamado convencional. E por várias razões. As tecnologias desenvolvidas têm permitido que, em vários casos, o custo de produção seja menor quando se produz o alimento “limpo”; o entendimento de que não se pode produzir o alimento de melhor qualidade apenas para uma parcela privilegiada da população e, ainda, a visão de que queremos que a produção e o consumo dos alimentos orgânicos aumentem significativamente, e, para isso, é necessário que o preço seja competitivo.
           De uma forma ou de outra, quer o preço do alimento orgânico seja ou não mais caro, a formação de instituições que têm como função garantir que a produção do agricultor é aquilo que ele afirma é questionável. Cria-se mais um elo na já extensa corrente que separa produtores e consumidores. Onera-se o preço final do produto. Não se privilegia formas de organização social que poderiam, por parte do agricultor, serem criadas para conferir maior credibilidade à sua produção e, por parte do consumidor, exigir seriedade no trabalho desenvolvido pelo agricultor. E, principalmente, não cumpre a função que se propõe a cumprir: a de garantir que o produto do agricultor foi produzido dentro das normas estabelecidas. Pelo simples fato de que não é possível para nenhum certificador acompanhar, diariamente, as atividades de um agricultor.
         Por coerência com o nosso discurso, acreditamos que a garantia da qualidade do produto orgânico seja uma tarefa da sociedade civil organizada. Que não a entreguemos, (ao menos nós que buscamos construir o novo), nem à voracidade do mercado nem ao paternalismo do Estado. Uma voracidade que corrompe princípios. Um paternalismo que sufoca iniciativas criativas e independentes.
        O fato é que ficou para trás o tempo onde todos os que falávamos de Agricultura Ecológica mostrávamos certa identidade de propósitos...
          Hoje, está claro que os objetivos são os mais variados. De alguma maneira é possível identificar que o crescimento do movimento de agricultura orgânica causou uma erosão dos princípios iniciais. Parece que os sólidos princípios foram arrastados, pelo rio do crescimento, para o mar do mercado...


A nossa concepção

         Exemplos onde a organização da sociedade civil tem se mostrado um meio eficaz para a “certificação” dos produtos orgânicos já existem. Associações de Agricultores Ecologistas têm cumprido esta tarefa, onde podemos identificar três instâncias de certificação. A primeira, a confiança depositada no próprio agricultor. É importante que ao agricultor seja dada a responsabilidade de garantir a idoneidade de sua produção. Um passo imprescindível para que ele se sinta responsável pelas suas ações. A segunda, a pressão do próprio grupo. Por motivos que a psicologia social explica, os indivíduos tendem a ter, em grupo, um padrão de comportamento “eticamente correto”[2]. A terceira instância seria uma espécie de comissão de ética, responsável por cobrar de seus companheiros que a ética permeie suas ações. As associações dos próprios agricultores se responsabilizando pela honestidade do trabalho desenvolvido por seus associados. Um passo oportuno para que o agricultor seja, também nesta etapa, sujeito no seu processo de desenvolvimento.
           Ao consumidor também cabe se organizar para que os seus direitos sejam respeitados. Também, aqui, já existem exemplos reais de cooperativas ou associações de consumidores que, de alguma forma, acompanham o trabalho desenvolvido pelos produtores, e podem atestar ou não a qualidade dos produtos.
      Mesmo quando as distâncias entre os produtores e consumidores são grandes, há mecanismos que podem ser acionados para que a intermediação de um organismo certificador não seja necessária, como troca de informações entre as diferentes organizações de produtores e consumidores, responsabilizando as entidades locais pela idoneidade da produção. Podemos pensar em envolver neste processo sindicatos, cooperativas, etc.
Muitos afirmam que esta proposta é demasiado subjetiva. Confiança, comissão de ética, sociedade civil... A estes, afirmamos que não é mais subjetiva do que visitas anuais e/ou fiscalizações periódicas de certificadores, muitas vezes se cobrindo distâncias de milhares de quilômetros. Com uma visita anual, de dois ou três dias, um certificador inglês atesta a idoneidade de um agricultor Colombiano. Mais subjetivo impossível! Entre duas propostas subjetivas, permaneçamos com aquela que nos traz um conteúdo coerente com nossos objetivos.
          É óbvio que a importância da organização da sociedade civil ultrapassa, em muito, a necessidade de certificarmos a produção primária. Aqui o que estamos querendo mostrar é como podemos pensar em formas de certificação que promovam a participação ao invés do imobilismo. A cooperação em detrimento do individualismo. E, desta forma, fazer com que a certificação seja uma tecnologia que contribua para que alcancemos o objetivo da independência e auto-determinação do agricultor.


A realidade
    
        Infelizmente, esta posição que acabamos de expressar não tem sido majoritária nos debates que têm se travado acerca da certificação. Mais uma vez, se prefere seguir a cartilha dos países do norte sem questionar se ela corresponde aos nossos interesses.
           Hoje, é uma exigência do Mercado Comum Europeu que os produtos orgânicos a serem importados pelos seus países membros devam ser certificados. E, esta certificação só será válida com o aval dos governos dos países importadores. Sem dúvida, uma inversão. Seria mais coerente que as exigências partissem de quem, mesmo sendo depositário da maior parte dos resíduos químicos do planeta, sem fabricá-los, consegue, através do esforço da sociedade civil, produzir um alimento saudável e de alto valor biológico.   
           É fato sabido por todos nós, que a produção de um alimento livre de contaminações nos países europeus é uma tarefa árdua. Para alguns, impossível. Segundo Saldanha “O veneno está definitivamente democratizado por todas as nações, independente de sistema político. As contaminações migram livremente acima das fronteiras geográficas”[3] . É natural que diante de uma situação tão dramática uma solução fosse buscada. E a procura por estes alimentos saudáveis em ambientes menos contaminados do planeta foi a solução encontrada. Por nosso lado a exportação de produtos primários encontra entre nós vários adeptos. Afinal, são quinhentos anos de tradição...
         A lástima fica por conta da constatação de que não temos um excedente de produtos orgânicos que torne necessário a busca de mercados no exterior. Pelo contrário, o mercado interno tem se mostrado ávido por este tipo de produto. Possivelmente, não tão organizado quanto o mercado externo, mas, seguramente, tão interessado quanto este. E aqui queremos registrar uma constatação feita em seis anos de experiência com o comércio de produtos orgânicos, no mercado interno: nunca presenciamos a demanda, por parte do consumidor, de um processo de certificação da produção orgânica de alimentos!
       Mas, como há até quem afirme que a história acabou, e a vitória do mercado é inquestionável, concordamos que, para alguns, os apelos do MCE são irrecusáveis. Por isto consideramos oportuno que a proposta de normatização e certificação que esta sendo discutida pelas ONG’S e pelo Ministério da Agricultura se limite às questões de exportação e não sejam aplicáveis no mercado interno. Para que tenhamos a possibilidade de darmos continuidade ao processo que estamos vivendo, da construção conjunta - técnicos, agricultores e consumidores - de uma nova visão da agricultura. Onde a sustentabilidade é imprescindível, mas também o é a necessidade de resgate da cidadania do homem do campo.                                

  
                                                                                                          Ipê, primavera de 1994


[1] Eng. Agrônomo, coordenador do CAE-Ipê
[2] Georges Lapassade cita, sobre o comportamento desviante, que “pode-se ainda observar nos grupos uma pressão no sentido da uniformidade que implica, em particular, como conseqüência, a rejeição daqueles que desviam, quer dizer, dos membros que não adotam os valores, normas e finalidades do grupo.”
Lapassade, Georges. Grupos , organizações e instituições, 3a ed. Rio de Janeiro, F. Alves, 1989.
[3]Saldanha, Jacques em texto não publicado.                                       

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