- caminhos e descaminhos -
Laércio Meirelles[2]
A ORIGEM
A Certificação de Produtos Orgânicos tem sua origem concomitante com a própria criação de um mercado diferenciado para produtos limpos. Com as primeiras experiências de produção alternativa ao modelo quimista–reducionista, proposto pela ciência agronômica e difundido pela mal dita Revolução Verde, surge um mercado para esta produção alternativa. Este mercado diferenciado é fruto de um desejo natural tanto dos consumidores quanto dos agricultores. Por parte dos consumidores o desejo de terem acesso a produtos mais sadios e por parte dos agricultores a expectativa de verem reconhecidos seus esforços de produzirem sem as propaladas facilidades do modelo convencional.
Com o passar dos anos este mercado para Produtos Orgânicos cresceu e se fez notar pelos levantamentos estatísticos. Com o estabelecimento deste mercado, cresce também o mercado de certificação destes produtos. Assim, o que em um primeiro momento foi uma iniciativa dos próprios agricultores para diferenciarem o fruto de seu trabalho com uma marca que os identificassem, acabou se transformando em um intricado mecanismo que envolve leis, normatizações,credenciamentos,inspeções, contratos, certificados, selos e, ainda, fortes interesses comerciais.
Em um primeiro momento tínhamos alguns agricultores buscando estabelecer suas marcas no mercado, identificando-se como Produtores Orgânicos. Hoje temos um grande número de empresas que vendem serviços ao agricultor, para assegurar ao consumidor que ele de fato compra o que deseja: um produto orgânico, limpo, livre de contaminantes. São as Certificadoras de Produtos Orgânicos.
Os argumentos que defendem a necessidade da certificação para produtos orgânicos são procedentes e sedutores. Garantir ao consumidor a qualidade do que ele compra, ainda mais quando este consumidor está se dispondo a pagar um sobre-preço nada desprezível por estes produtos. Proteger o agricultor, que se esforça para cumprir com as normativas que definem a produção orgânica, cada vez mais exigentes, de potenciais fraudes de seus concorrentes. Argumenta-se também que a normatização, irmã mais velha da certificação, permite que as regras do jogo fiquem mais claras, se definindo com nitidez o que é produção orgânica e democratizando o acesso a este ainda seleto clube.
A CRÍTICA
Falando em clareza, talvez seja oportuno analisarmos também as eventuais desvantagens da metodologia de certificação hoje consagrada no ‘mundo orgânico’. O preço é uma delas. Para a realidade da agricultura familiar nos países do Sul, o preço cobrado pelo serviço da certificação os impede de entrar neste jogo. Ao preço cobrado pelas certificadoras se soma o fato de muitos compradores do Norte exigirem determinados certificados, obrigando os exportadores do Sul a contratarem o serviço de mais de uma certificadora, algumas vezes chegando a 4 ou 5 diferentes certificações para a mesma área, levando os custos a patamares insustentáveis para os produtores.
Além do preço, a própria metodologia da certificação é um problema, principalmente quando falamos em Agricultores Familiares. O incentivo à organização e à autodeterminação dos agricultores e das agricultoras sempre foram um correlato importante quando se fala sobre Agricultura Orgânica no âmbito da Agricultura Familiar. A inspeção por um elemento neutro não estimula o surgimento de formatos organizativos que poderiam ser desenhados para atender também a esta necessidade, de conferir credibilidade ao produto orgânico. O fato de esta credibilidade ser ‘concedida’ pela inspeção, por pessoas e estruturas alheias à comunidade, não cria um processo de empoderamento da família agricultora ou da comunidade.
A premissa de suspeição dos agricultores, intrínseca a esta lógica de certificação, constitui outra desvantagem deste processo, já que causa desconforto a quem busca a certificação e não contribui com o resgate da auto-estima das agricultoras e agricultores envolvidos.
O próprio sobre-preço, que elitiza o consumo de produtos orgânicos, se é verdade que não é conseqüência exclusiva da certificação, guarda com esta uma estreita relação. A certificação se legitima mais na medida em que os preços dos produtos orgânicos são mais altos que os similares convencionais. O prêmio orgânico[3]aumenta em função do preço pago pela certificação. Com este mútuo condicionamento mais difícil fica o rompimento da barreira do nicho de mercado e a busca da massificação e democratização da produção e consumo de produtos limpos.
A normatização de fato cumpre um papel de deixar mais claro o que se quer dizer quando se fala em produção orgânica. Por outro lado pasteuriza procedimentos e burocratiza o acesso dos produtores à condição de produtores orgânicos. Limita a criatividade e tende a reduzir a prática da agricultura orgânica ao cumprimento de regras pré-estabelecidas.
A POSIÇÃO
Em nossa experiência, onde há mais de quinze anos trabalhamos com a produção e comercialização de produtos orgânicos, percebemos que a relação custo/benefício da certificação é alta. Nossa posição, portanto, que sabemos bastante polêmica, é contrária à exigência legal de certificação para a comercialização de produtos orgânicos. Primeiro porque acreditamos que as inúmeras legislações de proteção do direito do consumidor conformam o marco jurídico necessário e suficiente para prevenir e punir, quando necessário, eventuais fraudes. E, segundo, por não enxergamos na certificação um mecanismo eficiente de fomentar a produção e o consumo de Produtos Ecológicos.
No entanto a maioria dos países já possui legislações, ou estão em vias de promulgá-las, onde consta a exigência de certificação para todos os produtos a serem comercializados sob a qualificação de orgânicos, ecológicos, biológicos e outros termos similares.
Em função de nos movermos em um contexto onde a obrigatoriedade da certificação é um fato, nos sentimos compelidos a tentar desenvolver processos de certificação que sejam o mais adequado possível à dinâmica da Agricultura Familiar. Podemos observar que esta busca tem ocorrido em diferentes locais e distintas realidades. O Sul do Brasil[4] é uma destas regiões.
A CONSTRUÇÃO DE ALTERNATIVAS
Durante os anos 80, período que marca o processo de redemocratização da sociedade brasileira, após quase 20 anos de ditadura militar, surgem, no Sul do Brasil, inúmeras organizações populares e não governamentais preocupadas em construir uma alternativa ao modelo de agricultura caracterizado pela chamada ‘revolução verde’.
A Rede Ecovida de Agroecología surge como resultado deste processo histórico, com a integração de muitos destes atores, e tem na promoção da Agroecologia seu objetivo central.
Segundo um documento interno “A Rede Ecovida de Agroecologia é um espaço de articulação entre agricultores familiares e suas organizações, organizações de assessoria e pessoas envolvidas e simpáticas com a produção, processamento, comercialização e consumo de alimentos ecológicos. A Rede trabalha com princípios e objetivos bem definidos e tem como metas fortalecer a agroecologia em seus mais amplos aspectos, disponibilizar informações entre os envolvidos e criar mecanismos legítimos de geração de credibilidade e de garantia dos processos desenvolvidos por seus membros”.[5
A Rede atualmente é formada por 180 grupos de agricultores dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, envolvendo um total de 2300 famílias. Participam ainda 10 cooperativas de consumidores de produtos ecológicos e 20 ONGs. A unidade operacional da Rede são os Núcleos Regionais, que hoje são em número de 21. Os Núcleos Regionais, como a própria Rede, são formados por grupos de agricultores, grupos de consumidores e entidades de assessoria. A Rede Ecovida é uma articulação aberta e estes números estão em constante crescimento.
No âmbito da Rede Ecovida de Agroecologia a certificação tem sido trabalhada como um processo pedagógico onde agricultores, técnicos e consumidores se integram no intento de buscarem uma expressão pública da qualidade do trabalho que desenvolvem. A este processo chamamos certificação participativa.
A CERTIFICAÇÃO PARTICIPATIVA
Denominamos de Certificação Participativa ao processo de geração de credibilidade que pressupõe a participação solidária de todos os segmentos interessados em assegurar a qualidade do produto final e do processo de produção. Este processo resulta de uma dinâmica social que surge a partir da integração entre os envolvidos com a produção, consumo e divulgação dos produtos a serem certificados.
No caso da Rede Ecovida de Agroecologia a Certificação Participativa se dá em torno do Produto Orgânico e a credibilidade é gerada a partir da seriedade conferida a palavra da família agricultora e se legitima socialmente, de forma acumulativa, nas distintas instâncias organizativas que esta família integra.
A condição de membro da Rede Ecovida pressupõe um compromisso com a Agroecologia, mas esta condição não autoriza de forma automática a utilização do selo. Para isto é necessário passar pelo processo de certificação. O processo de certificação ocorre a partir da demanda de um grupo de agricultores interessados em utilizar o selo Ecovida.
A seguir enumeraremos as etapas do processo de certificação que resultam na utilização do selo Ecovida.
- Demanda por parte de um grupo de agricultores pelo processo de certificação. Esta demanda ocorre apenas se o grupo sente a necessidade de tornar público o reconhecimento conferido pela Rede em relação a seu processo/produto;
- Visita as propriedades do grupo por integrantes da Comissão de Ética do grupo, do Conselho de Ética do núcleo e da assessoria;
- Um dos integrantes desta comissão que se constituiu para a visita se encarrega de elaborar um relatório onde constam aspectos das propriedades visitada, ligados ao seu grau de ecologização e a outros aspectos que constam nas normas internas da Rede;
- Reunião entre o grupo, integrantes do Conselho de Ética do Núcleo Regional e assessoria. Nesta reunião se discute o relatório das visitas, o grau de ecologização das propriedades e do grupo e se planejam ações visando superar limites identificados;
- Decisão por parte do Conselho de Ética do Núcleo sobre a liberação ou não do uso do selo para este grupo;
- Caso tenha obtido a autorização, o grupo deve informar a coordenação do Núcleo Regional em que produtos e em que quantidade o selo será utilizado.
- Este processo é cíclico e deverá ser recomeçado, a partir do passo 2, sempre que pairar alguma dúvida sobre o produto ou o processo em questão ou por qualquer outra razão que os envolvidos julgarem conveniente.
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| Selo Ecovida |
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| Marca Ecovida |
AVANÇOS E LIMITES
Esta forma encontrada pela Rede Ecovida para dar credibilidade aos produtos de seus membros, e que vem sendo denominado de certificação participativa está ainda em construção. O sentido desta construção é a busca de um mecanismo que permita aos agricultores e consumidores se moverem em um marco jurídico que exige a certificação, sem perderem a perspectiva da necessidade de popularizar a produção e o consumo de Produtos Orgânicos.
No estágio em que se encontra é possível enumerar alguns avanços que conquistamos e alguns desafios que devemos ainda superar.
Avanços:
a) O desenho de uma metodologia de certificação mais apropriado a Agricultura Familiar, que estimula a integração entre agricultores e consumidores e a organização social, propiciando uma participação ativa de todos os interessados;
b) Processo de certificação que conta com um protagonismo dos agricultores e dos consumidores, não concentrando poder e recursos na mão de empresas prestadoras de serviço;
c) A integração de agricultores, consumidores e assessores em uma lógica de Rede, onde a relação que se estabelece é horizontal e de interdependência, não ‘permitindo’ hierarquias;
d) A construção de uma legitimidade perante a sociedade em relação a seriedade do trabalho desenvolvido pela Rede;
Limites:
a) A falta de reconhecimento legal para o processo de Certificação Participativa, impedindo agricultores que fazem esta opção de se vincularem a determinados mercados;
b) A falta de reconhecimento por parte de certificadoras ‘convencionais’ da validade da certificação participativa;
c) O entendimento de que o processo de certificação participativa é válido apenas para o mercado local, não podendo ser utilizado onde existe um distanciamento entre o produtor e o consumidor;
d) A dificuldade em encontrar um ponto de equilíbrio que permita a geração dos documentos suficientes para conferir transparência ao processo de certificação participativa, mas que não o descaracterize, tornando-o burocrático, oneroso e inviabilizando o protagonismo dos agricultores e consumidores;
e) A baixa qualidade da demanda em relação à certificação, tanto por parte dos agricultores quanto dos consumidores, onde a ‘cultura do selo’, muitas vezes leva a percepção que este é mais importante do que o produto ou o processo de produção.
OS PRÓXIMOS PASSOS
A Rede Ecovida de Agroecologia, como já dissemos, é fruto do trabalho desenvolvido nas últimas décadas por milhares de pessoas e centenas de organizações. Trabalhos que tem como fim último a criação de um espaço rural onde seus habitantes possam ter atendidas suas necessidades, sem comprometer o acesso das futuras gerações as mesmas condições de satisfação.
A Certificação Participativa tem sido um instrumento pedagógico eficiente para motivar a articulação entre estes distintos atores. E é principalmente neste sentido que se justificam os esforços que têm sido empreendidos em torno deste processo de certificação.
Os desafios que se apresentam para este próximo período são de duas ordens. Um mais interno, onde é necessário que todos os integrantes da Rede Ecovida internalizem os procedimentos e os objetivos da Certificação Participativa. A construção de um coletivo forte, unido em torno de percepções e ideais comuns, é condição indispensável para que a Rede Ecovida possa contribuir com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna, seu objetivo último.
Outro, de caráter mais externo. Buscar a conexão com um conjunto de trabalhos que possuem objetivos semelhantes aos da Rede, e que acontecem em todo o Planeta. A ampliação destas conexões por um lado irá conferir maior legitimidade a este processo de certificação e por outro contribuirá para contaminarmos, de maneira positiva, os rumos do desenvolvimento de nossa sociedade.
Ipê, novembro de 2003.
[1] Para efeito deste breve artigo iremos considerar Agricultura Orgânica e Agricultura Ecológica como sinônimos. Entretanto, salientamos que vem crescendo a percepção que adjetiva como ‘orgânica’ aquela agricultura que visa a produção de alimentos limpos para um mercado diferenciado e de ‘ecológica’ a forma de se trabalhar na agricultura que busca um re-dimensionamento da relação do ser humano com a natureza e com o outro, em bases mais harmônicas e solidárias, e que tem no mercado diferenciado uma conseqüência e não um fim em sim mesmo.
[2] Engenheiro Agrônomo. Coordenador do Centro Ecológico Ipê, ONG que desde 1985 trabalha com assessoria e formação em Agricultura Ecológica.
[3] “Prêmio Orgânico” é definido como o diferencial de preço entre o produto orgânico e o similar convencional.
[4] A região Sul do Brasil é umas das cinco regiões geopolíticas do país e possui uma área de cerca de 580.000 km2 com uma população aproximada de 25 milhões de pessoas.
[5] Documento. Rede Ecovida de Agroecologia, Normas de Organização e Funcionamento. Lages, dezembro de 2001.



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