Agroecologia, Mercados Locais e Soberania Alimentar
Laércio Meirelles[1]
Soberania Alimentar e Produção de Alimentos
O acesso a um alimento saudável e de boa qualidade é um direito universal dos povos, e deve se sobrepor a qualquer fator econômico, político ou cultural que impeça sua efetivação. Todas as pessoas devem ter direito a um abastecimento alimentar seguro, culturalmente apropriado e em quantidade e qualidade suficiente para garantir seu desenvolvimento integral.
O conceito de Soberania Alimentar remete, além do dito acima, a um conjunto mais amplo de relações: ao direito dos povos de definir sua política agrária e alimentar, garantindo o abastecimento de suas populações, a preservação do meio ambiente e a proteção de sua produção frente à concorrência desleal de outros países[2].
Nesta perspectiva, a noção de Soberania Alimentar incorpora várias dimensões: econômica, social, política, cultural e ambiental. Por sua vez estas dimensões se relacionam: ao direito de acesso ao alimento; à produção e oferta de produtos alimentares; à qualidade sanitária e nutricional dos alimentos; à conservação e controle da base genética do sistema alimentar[3]; às relações comerciais que se estabelecem em torno do alimento, em todos os níveis.
Este inalienável direito de todo ser humano tem sido negligenciado de forma sistemática por nossa sociedade. Constata-se com pesar que as formas hoje dominantes de produção, processamento e consumo de alimentos têm aprofundado de maneira significativa a assimetria entre países e territórios, aumentado a insegurança alimentar e nutricional da população mundial e acelerando o processo de degradação ambiental nos diferentes continentes, ampliando, ao mesmo tempo, o controle das grandes corporações sobre os diferentes segmentos da cadeia alimentar.
A insegurança alimentar, não apenas no Brasil, mas, nos países do Sul em geral, encontra-se associada ao acelerado processo de degradação das bases econômicas, sociais, biológicas e culturais da Agricultura Familiar ocorrido nas últimas décadas.
A internacionalização, nos últimos cinqüenta anos, do pacote tecnológico da mal denominada Revolução Verde tem levado, em primeiro lugar, a uma crescente erosão da biodiversidade agrícola e alimentar. Este modelo tecnológico, baseado no cultivo de variedades genéticas de alta produtividade, na utilização de insumos químico-sintéticos, na mecanização e no recurso a fontes não renováveis de energia, tem sido o responsável pela deterioração progressiva da própria base natural que assegura a estrutura e o funcionamento dos sistemas agrícolas.
No que diz respeito à Soberania Alimentar, o impacto deste modelo é paradoxal. Aumentou a produção de alimentos no mundo ao mesmo tempo em que cresce o número de famintos. Concentração da terra, êxodo rural, descapitalização da agricultura, incremento dos monocultivos e erosão dos solos são algumas das causas apontadas para esta anomalia. Em seu editorial do dia 18 de setembro de 2000, a Folha de São Paulo, citando um relatório da FAO, afirmava: “O mundo já produz alimentos em quantidade suficiente para suprir as necessidades nutricionais de todos os seus 6 bilhões de habitantes. Ainda assim, cerca de 800 milhões sofrem de desnutrição... infelizmente, o mundo ainda parece longe de dar uma resposta para o problema da fome, que não diz tanto respeito a produção de alimentos, mas sim a distribuição de renda.”
Agroecologia e Soberania Alimentar
A Agroecologia, cujo conceito vem sendo construído com a contribuição de diversas áreas do conhecimento, se propõe a ser uma resposta sócio-ambiental a esta degradação ocasionada pela revolução verde.
Concebido inicialmente como uma disciplina científica que estuda os agroecossistemas, o conceito de Agroecologia hoje incorpora também o estudo do desenho de agroecossistemas sustentáveis, levando em consideração todos os fatores que podem influenciar este desenho[4]. Esta evolução conceitual leva, naturalmente, a uma forte aproximação entre o trabalho com Agroecologia e a busca da defesa da Soberania Alimentar dos povos.
Iniciativas “agroecológicas” como o resgate e a manutenção de sementes varietais pelas famílias agricultoras, a conservação de recursos naturais, a produção de alimentos limpos e a articulação de novas redes de distribuição e consumo de alimentos são condições sine qua non para garantir o acesso de alimentos de qualidade a todos. E, como já vimos, acesso é um problema central quando o tema é Soberania Alimentar.
A Rede Ecovida e os Mercados Locais
A Rede Ecovida de Agroecología surge no fim da década de 90, a partir da integração de dezenas de organizações que tinham na promoção da Agroecologia seu objetivo central.
Segundo um documento interno “A Rede Ecovida de Agroecologia é um espaço de articulação entre agricultores familiares e suas organizações, organizações de assessoria e pessoas envolvidas e simpáticas com a produção, processamento, comercialização e consumo de alimentos ecológicos. A Rede trabalha com princípios e objetivos bem definidos e tem como metas fortalecer a agroecologia em seus mais amplos aspectos, disponibilizar informações entre os envolvidos e criar mecanismos legítimos de geração de credibilidade e de garantia dos processos desenvolvidos por seus membros”.
A Rede atualmente é formada por 180 grupos de agricultores dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, envolvendo um total de 2300 famílias. Participam ainda 10 cooperativas de consumidores de produtos ecológicos e 25 ONGs. A unidade operacional da Rede são os Núcleos Regionais, que hoje são em número de 21. Os Núcleos Regionais, como a própria Rede, são formados por grupos de agricultores, grupos de consumidores e entidades de assessoria. A Rede Ecovida é uma articulação aberta e estes números estão em constante crescimento.
Para a Rede Ecovida de Agroecologia todo processo de transição agroecológica deve ter como ponto de partida a recuperação da capacidade da propriedade familiar em produzir seus próprios alimentos. A partir desta premissa é que devem ser construídas as estratégias de vinculação dos agricultores com o mercado, sempre buscando opções que por um lado estimulem e consolidem o processo de transição tanto do ponto de vista técnico quanto sócio-econômico e por outro disponibilizem à população urbana produtos de qualidade a preços acessíveis.
Existe hoje uma forte concentração nas redes de varejo de alimentos, que alonga canais de distribuição, desestrutura redes locais de abastecimento e pasteuriza o consumo, limitando nossa dieta alimentar. Infelizmente a tendência majoritária, tanto nacional quanto internacional, é a de busca destas grandes redes de supermercados e canais de exportação como principais estratégias de comercialização para os produtos orgânicos.
Contrariando esta tendência, os membros da Rede Ecovida de Agroecologia têm buscado privilegiar o mercado local para escoamento de sua produção. Mercado Local aqui não pode ser entendido unicamente como uma localização geográfica, mas também como um processo de comercialização que busca fundamentalmente:
- Facilitar o acesso ao alimento ecológico (democratizar, popularizar e consequentemente massificar o consumo de produtos ecológicos)
- Que se encurte a distância entre produtores e consumidores, estabelecendo relações solidárias entre eles;
- Valorização dos serviços sócio-ambientais gerados;
- Que os benefícios da comercialização sejam compartilhados entre os envolvidos;
- Cooperação, transparência e complementaridade entre os envolvidos;
- Uma crescente inclusão de agricultores e consumidores ao mercado.
No entendimento da Rede Ecovida um mercado pautado por estes princípios, permite o escoamento de uma produção diversificada, baseada em recursos genéticos autóctones, uma melhor remuneração para o agricultor, preços mais acessíveis ao consumidor, baixos custos operacionais. Mercados como estes propiciam ainda que uma maior parcela da renda gerada na agricultura seja retida pelo agricultor, com um conseqüente aumento em sua capacidade de consumo.
É na busca da construção de relações de mercado desta natureza que a Rede Ecovida tem estimulado a construção de uma Rede Solidária de Produção e Circulação de Produtos Ecológicos. As células de comercialização desta Rede são fundamentalmente feiras livres, cooperativas de consumidores, mercados institucionais, pontos de abastecimento popular, pequenas lojas e comerciantes.
Várias experiências ocorrem hoje em todos os núcleos da Rede Ecovida e que apontam para a construção de que podemos chamar de “outro mercado”.
No Núcleo Monge João Maria, no Centro Sul do Paraná, o desenvolvimento do mercado local para produtos ecológicos tem se baseado em distintos equipamentos, tais como feiras livres, mercado institucional e comercialização em festas e eventos locais. Estes espaços de comercialização têm estimulado a diversificação da produção entre as famílias agricultoras ecologistas, o que tem gerado efeitos positivos na construção da soberania alimentar, tendo em vista a melhoria e o enriquecimento nos hábitos alimentares das famílias. Da mesma forma tem popularizado o acesso ao alimento ecológico, já que as feiras, em um total de quatro, são realizadas em bairros populares, a preços acessíveis e as compras institucionais estão voltadas ao atendimento de 4 creches, 1 pré-escola e 5 escolas em bairros carentes, além de entidades assistenciais presentes em 3 bairros. Este é um exemplo importante que rompe com a lógica de elitização dos mercados de produtos orgânicos.
No Núcleo Maurício Burmeister do Amaral, na região metropolitana de Curitiba-PR, a Agroecologia tem contribuído para o desenvolvimento de canais alternativos de mercado, sob o controle das famílias agricultoras e consumidoras, diminuindo a dependência dos intermediários e das grandes redes de supermercados. Doze novas feiras agroecológicas (algumas com gestão de consumidores), cinco pontos de comercialização, duas escolas que recebem merendas escolares agroecológicas, algumas iniciativas de entrega de "sacolas" agroecológicas e comercialização solidária em bairros pobres, são exemplos de experiências de descentralização da comercialização.
Em um trabalho realizado em mais de 16 oficinas nos grupos de agricultores, como parte de uma capacitação sobre gestão, foram levantados dados significativos sobre a grande diversidade de alimentos ecológicos produzidos e consumidos pelas famílias agricultoras. No entendimento dos integrantes deste núcleo, isto demonstra o resgate da riqueza alimentar destas famílias e a presença de uma renda direta ou indireta às vezes superior àquela obtida pela comercialização dos produtos destinados ao mercado.
No Núcleo Litoral Solidário, que abrange o Litoral Norte do RS e o Sul de SC, um dos equipamentos mais estimulados tem sido as Cooperativas de Consumidores de Produtos Ecológicos, presentes hoje em seis diferentes municípios. Basicamente funcionam a partir da organização dos consumidores e se materializam em uma loja de produtos ecológicos. Uma delas, a COOPET, localizada no município de Três Cachoeiras, tem uma forma de gestão bastante original. Cobra de seus associados uma pequena mensalidade, hoje de 20 reais, suficientes para cobrir seus custos operacionais. Isto lhe permite vender a seus associados os produtos ao preço “de custo”. Para facilitar o acesso dos agricultores aos produtos que comercializa, a COOPET tomou a iniciativa de cobrar de grupos de agricultores apenas uma mensalidade, que permite o acesso ao preço de associado a todos os membros destes grupos. Esta é mais uma iniciativa que facilita o acesso a produtos ecológicos.
Ainda neste núcleo, uma pesquisa feita sobre os quintais agroflorestais mostrou o impacto positivo deste tipo de área na dieta alimentar das famílias agricultoras. Os quintais agroflorestais são áreas de tamanho variável, situadas quase sempre no entorno das áreas de moradia, onde são cultivadas espécies vegetais, eventualmente animais, de uso alimentar, medicinal, ornamental ou madeireiro. Estas espécies formam um mix que abrange, quase sempre, diferentes, estratos com níveis de biodiversidade que variam tanto no plano horizontal quanto no vertical. O trabalho desenvolvido neste núcleo busca resgatar a importância dos quintais no desenho de uma propriedade ‘agroecológica’. O gráfico ao lado mostra que a maior parte das espécies cultivadas nos quintais possui valor alimentício. Hoje cerca de 80 famílias agricultoras são estimuladas a reforçarem seus trabalhos nestas áreas.
Foi encontrado um total de 94 espécies em um levantamento feito em oito quintais representativos de 4 municípios. Muitas destas espécies são multiusos.
No Núcleo Serra, no nordeste do RS, a partir de um convênio estabelecido entre o Centro Ecológico e a Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, desde 1998 se comercializa bananas produzidas sob os princípios da Agroecologia, no Litoral Norte do RS Sul de SC. O diferencial é o objetivo desta comercialização: conectar agricultores e consumidores com baixo poder aquisitivo. Semanalmente são comercializados em dois pontos estratégicos, de grande fluxo de pessoas, 10 toneladas de banana a um preço 30 a 40 % abaixo do preço de mercado da banana convencional. Ainda assim para os agricultores este valor, descontando os custos de comercialização, significa um incremento de 100% em sua renda (veja os números no Box ao lado). Incremento dos ingressos dos agricultores associado a acesso da população de baixa renda a alimentos de qualidade, a preços acessíveis. Esta iniciativa é mais uma demonstração que práticas agroecológicas, associadas aos mercados locais, trazem impactos positivos à Soberania Alimentar da população.
Ponto de colheita – Caxias do Sul
50 famílias agricultoras envolvidas; 10 ton de banana comercializadas por semana
Preço recebido pelo agricultor = R$ 0,66/kg (o custo de comercialização é de R$ 0,18/kg)
Preço pago pelo consumidor: R$ 0,66/kg
Mercado convencional:
Preço pago ao agricultor = R$ 0,25/kg
Preço pago pelo consumidor: R$ 1,00/kg
Aqui repetimos o que já dissemos no início: o acesso a alimentos saudáveis e de boa qualidade é um direito universal dos povos, e deve se sobrepor a qualquer fator econômico, político ou cultural que impeça sua efetivação. Infelizmente na sociedade contemporânea este acesso está obstruído para uma parcela significativa da população.
Trabalhar para reverter este quadro é um dever de cada um de nós e da sociedade como um todo.
Os integrantes da Rede Ecovida entendem estar dando sua parcela de contribuição, a partir da realidade em que cada membro está inserido. A opção pela Agroecologia e pelo desenvolvimento de mercados locais para produtos ecológicos são elementos que julgamos indispensáveis para pavimentar o caminho que permite o acesso de todos a alimentos de qualidade.
Temos a dimensão que trabalhos como os aqui descritos não se avolumam a ponto de se fazerem notar pelas estatísticas de produção e comercialização de alimentos. Ainda assim acreditamos que são exemplos que devem ser observados. Reascendem as esperanças, bem que a escassez tem deixado ainda mais valioso, de que é possível construir um mundo onde todos e todas, cada um e cada uma, tenhamos garantido nosso direito à alimentação saudável.
[1] Coordenador do Centro Ecológico, ONG que desde 1985 trabalha com o estímulo a produção e ao consumo de produtos ecológicos. O Centro Ecológico é membro da Rede Ecovida de Agroecologia.
[2] A noção de soberania alimentar, desenvolvida pela Via Campesina, foi levada ao debate público por ocasião da Cúpula Mundial da Alimentação em 1996. Desde então tem se convertido em conceito chave no debate internacional, inclusive no âmbito da ONU.
[3] PESSANHA, Lavínia. A agricultura familiar e os quatro conteúdos da segurança alimentar. Rio de Janeiro, AGORA/RIAD/REDCAPA, 1995.
[4] Gliessman, Stephen. Agroecologia – Processos Ecológicos em Agricultura Sustentável, Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2000, páginas 53-57.




