Produto Orgânico ou Produto Ecológico ?
O Movimento de Agricultura Orgânica
É difícil precisar uma data que determine o surgimento do Movimento de Agricultura Orgânica. O termo foi cunhado por Rodale em 1948, a partir do trabalho do pesquisador inglês Albert Howard, e passou a agregar baixo esta denominação todo um conjunto de reações ao modelo quimista-reducionista adotado majoritariamente pela própria ciência agronômica.
È comum também ouvirmos a argumentação de que boa parte das premissas que configuram o conceito de Agricultura Orgânica está presente desde o próprio surgimento das atividades agrícolas. Nesta ótica o novo na agricultura é exatamente o quimismo e não a perspectiva orgânica .
De todas as maneiras, o que podemos observar é que desde a década de 70 vem crescendo consideravelmente a produção e o consumo de fibras e alimentos produzidos sem a utilização de agrotóxicos, adubos químicos de alta solubilidade e sementes modificadas geneticamente.
Em que pese a justa identificação que deve ser feita entre Agricultura Orgânica, Albert Howard, Steiner, Fukuoka e tantos outros, pioneiros na crítica aos métodos “modernos” de produção agrícola, esta hoje tem sido muito comumente identificada com a produção de alimentos limpos com vista à comercialização em um mercado diferenciado. Principalmente por aqueles que enxergam no mercado o principal fator de estímulo para a transição de um método convencional de cultivo a outro com bases mais ecológicas.
Sinteticamente podemos dizer que este movimento surge desde uma perspectiva que incorpora fortemente, na produção agropecuária, um conjunto de princípios e valores que se orientam por uma filosofia de preservação ambiental e justiça social.
São inúmeras as tentativas de conceituação de Agricultura Orgânica. Ainda que muitas vezes sob a égide de outros adjetivos, a busca de um conceito de Agricultura Orgânica sempre gira em torno de alguns eixos comuns. Segundo estes eixos mais ou menos comuns, a agricultura que contempla o ideário do Movimento de Agricultura Orgânica deve:
1. Ser Ambientalmente Sadia
2. Ser Energeticamente positiva
3. Ser Economicamente viável
4. Ser Socialmente justa
5. Ser Culturalmente apropriada
6. Favorecer o protagonismo do agricultor
O crescimento da demanda por produtos limpos, citado anteriormente, levou a configuração de um denominado “mercado de produtos orgânicos”. Esse mercado, em um dado momento, passa a ser encarado com um nicho importante, que pode se tornar uma significativa fonte de ganhos para os que nele se envolverem.
Esta possibilidade de lucros, aliada a uma lógica que confere ao mercado um protagonismo nas definições do rumo do próprio desenvolvimento social, tem feito com que estes princípios passem a ser pragmaticamente erodidos em direção a práticas que já não guardam relações com estes mesmos princípios. Assim que, ao invés de práticas que se coadunem com o ideário citado anteriormente, encontramos comumente no seio do que aqui denominamos Movimento de Agricultura Orgânica práticas que se contrapõe a este mesmo ideário. A seguir alguns exemplos que enumeramos para facilitar a comparação com os princípios enumerados anteriormente.
1. Substituição de Insumos
2. Circulação planetária de mercadorias
3. Custo operacional do mercado globalizado
4. Integração Verde
5. O mercado como organizador da unidade produtiva
6. Certificação policialesca
Não é difícil observarmos que estas práticas não conduzem a agricultura a contemplar os princípios listados anteriormente, não permitindo portanto que o movimento alcance os objetivos aos quais ele se propôs em sua própria gênese. Por exemplo como imaginarmos um sistema produtivo culturalmente apropriado, se hoje muitos defendem a tese de que a unidade produtiva deve se organizar a partir das demandas do mercado.
A percepção que temos sobre o momento atual é que vivemos uma fase de disputa em torno do Movimento de Agricultura Orgânica. Saímos de um momento em que um conjunto de princípios e valores norteava a construção deste movimento para uma situação onde o poder de sedução do mercado erodiu boa parte destes mesmos princípios.
Assim que valores como nova relação ser humano - natureza, independência do agricultor e justiça social deram lugar, em função de supostas “exigências de mercado”, a substituição de insumos químicos por orgânicos ou naturais, a estruturas policialescas de certificação e a mecanismos de integração verde.
Muitos de nós não estamos satisfeitos com estas mudanças ocorridos dentro deste movimento e buscamos uma forma de manter vivos os princípios e valores que permearam sua construção.
Por outro lado, a demanda por produtos limpos tem feito com que estruturas de mercado, que não possuem compromisso com estes princípios, se incorporem ou se relacionem cada vez mais com o movimento, tornando ainda mais nítido o distanciamento entre seus princípios originais e muitas de suas práticas atuais .
A expressão cotidiana da disputa
Esta disputa pode ser visualizada com relativa facilidade por todos que nos envolvemos cotidianamente com a Produção Orgânica. Se aguçarmos o nosso senso de observação, veremos que ela ocorre tanto na dimensão tecnológica, quanto na dimensão social dos trabalhos realizados neste campo. Mesmo na busca de distintas estratégias de circulação de mercadorias para os produtos limpos veremos esta disputa.
Abaixo mostramos um quadro comparativo que mostra um conjunto de valores e práticas que se situam em campos opostos e que a opção por um ou outro nos leva a assumir determinada posição neste cenário. Ou seja é a nossa prática que nos coloca em um ou outro campo desta "disputa". Claro que temos a percepção da arbitrariedade deste tipo de comparação. Principalmente porque existem as situações relativas à chamada transição, que podem desfocar uma análise feita sem ter em conta a história de determinada prática e seu ator. Sobre a transição, trataremos um pouco mais baixo. Sabemos também que a realidade se mostra multifacetada e que a coerência da opção dos distintos atores envolvidos com Agricultura Orgânica raramente se mostrará apenas a partir da análise destes quadros. Ainda assim julgamos oportuno este intento de visualização das práticas e/ou valores envolvidos em um ou outro campo desta disputa. Pode colocar mais nitidez em nosso entendimento sobre a conjuntura que atravessamos no seio do movimento e facilitar nossas opções.
MOVIMENTO EM DISPUTA
|
AGRICULTURA ORGÂNICA
|
AGRICULTURA ORGÂNICA DE MERCADO
|
Tecnologia
|
Re-desenho do agroecossistema
|
Substituição de insumos
|
Natureza como Matriz tecnológica
|
Produção limpa
|
Consórcios e rotações
|
Monocultivos orgânicos
|
Restabelecimento de equilíbrios.
|
Controle de Pragas (biológico, etc)
|
Manejo da Sucessão Vegetal
|
Erradicação de ervas daninhas
|
Restabelecimento dos ciclos de nutrientes
|
Utilização de adubos naturais
|
Enfoque de processos
|
Enfoque de produtos
|
Organização social
|
Nova estrutura social
|
Manutenção “status quo”
|
Organizações autônomas e democráticas
|
Integração verde
|
Independência do Agricultor
|
Dependência da Cadeia orgânica
|
Baseada na Agricultura Familiar
|
Indiferente quanto à estrutura fundiária
|
Tecnologias transparentes e socializáveis
|
Pacote tecnológico orgânico
|
Soberania Alimentar
|
Vantagens comparativas
|
Estruturas descentralizadas de processamento
|
Processamento Centralizado
|
Circulação de Mercadorias
|
Canais Alternativos
|
Comercialização convencional
|
Transparência
|
Obscuridade
|
Solidariedade / Complementaridade
|
Competição / Individualismo
|
Integração
|
Exclusão
|
Benefício da população com um todo
|
Benefício de grupos de interesse
|
Conhecimento mútuo entre os agentes participantes
|
Anonimato
|
Agricultura Orgânica ou Ecológica?
Dentro do contexto desta “disputa” tem sido comum a utilização de uma diferenciação entre os termos Agricultura Orgânica e Agricultura Ecológica
Os agricultores e agricultoras que mudaram sua percepção sobre a agricultura, incorporando praticas comprometidas com valores sócio-ambientais, buscam uma maneira de demonstrar que possuem diferenças em relação aqueles que vêem na Agricultura Orgânica um nicho de mercado. E para muitos a utilização do adjetivo Ecológica tem demarcado este campo que não faz da lógica de mercado a principal motivação para a transição rumo a uma agricultura que incorpora as já citadas perspectivas de preservação ambiental e justiça social
A etimologia do termo Agricultura Ecológica nos leva a defini-la como um conjunto de práticas agrícolas que se baseia no estudo do ecossistema. E assim ela tem sido compreendida pela maior parte dos envolvidos: como a produção agropecuária feita sob uma perspectiva de integração e harmonia com a natureza, mantendo a base de recursos da qual se utiliza.
Muitos também usam como sinônimos estes dois termos ou, ainda, usam preferencialmente Agricultura Orgânica se referindo ao mesmo padrão que acima descrevemos como Agricultura Ecológica. Neste caso se referenciam na etimologia do termo Orgânico que vem do grego organikós, que significa organização. Agricultura Orgânica busca a organização enquanto a convencional desorganiza os agroecossistemas.
Mesmo considerando a procedência deste argumento, somos obrigados a admitir que cada vez mais o senso comum se refere à Agricultura Ecológica como um conjunto de práticas e princípios mais sofisticados e complexos do que a Agricultura Orgânica, principalmente no que diz respeito aos aspectos sócio-ambientais. Algo como toda Agricultura Ecológica é Orgânica, não sendo a recíproca verdadeira.
A forte vinculação do termo Agricultura Orgânica com uma lógica de mercado tem feito com que muitos estejam desistindo de disputar e este conceito e estejam migrando para o termo Agricultura Ecológica. Principalmente na América Latina. Neste sentido, a disputa que anteriormente nos referimos com sendo entre os defensores da Agricultura Orgânica contra os defensores da Agricultura Orgânica de Mercado, passa a se reproduzir baixo outra denominação. Agricultura Ecológica x Agricultura Orgânica
Muito difundido também tem sido o termo Agroecologia, definido como a “disciplina científica que estuda os Agroecossistemas”, mas cotidianamente utilizado como sinônimo do que aqui descrevemos inicialmente como Agricultura Orgânica e nos últimos parágrafos como Agricultura Ecológica. É muito comum encontrarmos nos textos sobre Agroecologia esta noção da superioridade desta em relação à Agricultura Orgânica (de mercado), normalmente definida como uma mera substituição de insumos. Para os estudiosos da Agroecologia, a substituição de insumos é uma etapa inicial do processo de “transição Agroecológica”.
Sabemos das limitações destes breves comentários, e quanta controvérsia eles podem gerar. Sabemos também que existem ainda outras interpretações, mas não temos a pretensão de esgotá-las. Aqui tentamos sintetizar o que observamos como sendo um senso que vai se formando sobre estas denominações.
Este senso mais ou menos comum esta muito presente junto aos agricultores e agricultoras que estão envolvidas em grupos de produção de Alimentos Ecológicos. No ano de 1996, no II Encontro das Associações de Agricultores Ecologistas, realizado em Ipê, muito se debateu sobre este assunto. As conclusões tiradas neste encontro têm, desde então, balizado o trabalho do Centro Ecológico. Por esta razão as apresentamos a seguir.
Neste desenho está ilustrado o entendimento que o grupo reunido naquele encontro teve deste processo.
O primeiro estágio é o da obtenção do produto orgânico, produzido sem agrotóxicos e adubos químicos solúveis (hoje temos que acrescentar livre de organismos geneticamente modificados). A partir daí se inicia um processo constante de Ecologização no tempo e no espaço, com vistas à Propriedade Ecológica. De uma Propriedade Ecológica sai um Produto Ecológico.
A definição de uma Propriedade Ecológica carece ainda de indicadores e parâmetros claros que nos permitam sermos mais precisos nesta classificação. Mas, com certeza, é aquela propriedade que não utiliza mais adubos químicos solúveis, agrotóxicos e OGMs. Que mantém reservas florestais nos locais adequados, não utiliza o fogo e dá um tratamento adequado aos seus resíduos. Que trata cada envolvido neste processo como um cidadão.
Em última análise, este processo de Ecologização é interminável. Como nos fala Eduardo Galeano: “para isto serve a Utopia: para caminhar” .
Nesta percepção, o Agricultor Ecologista é o agente desta mudança. É o responsável por este caminhar. A diferença entre um produtor de produtos orgânicos e um Agricultor Ecologista, assim definiram os presentes no seminário, é que o primeiro está preocupado em produzir um alimento limpo para ter acesso a um mercado diferenciado; o segundo almeja mudanças nas suas relações com a Natureza e com seus semelhantes, buscando maior integração e harmonia. O mercado diferenciado, quando necessário, é uma conseqüência deste processo.
O problema da transição
Para terminar estas considerações gostaríamos de abordar a questão da transição. Como podemos trabalhar esta temática mantendo coerência com a opção pela Agricultura Ecológica. Em outras palavras por manter a coerência com os princípios originais do movimento de Agricultura Orgânica.
Nesta visão é importante também buscarmos respeitar os diferentes ritmos de adoção de mudanças oriundos de cada distinta realidade técnica, ecológica, econômica ou mesmo psicológica. Em outras palavras, cada agricultor possui um ritmo para a transição e isto deve ser respeitado. O importante é a ecologização constante e crescente, no tempo e no espaço, e a manutenção do bem criado.
Também o tempo necessário para a conversão é aqui relativizado. Não se baseia em um tempo supostamente necessário para descontaminar o solo e conseqüentemente produzir alimentos mais limpos, mas sim no desejo efetivo de ecologização progressiva, manifestado e demonstrado pelo agricultor.
Este entendimento pode gerar situações difíceis ao ser aplicado. Por exemplo podemos ter dois produtos iguais, obtidos sob as mesmas condições e considerarmos um deles tendo sido produzido por um Agricultor Ecologista e outro por um produtor de produtos orgânicos. É a historia e o contexto que vão demarcar a diferença.
O quadro abaixo tenta ilustrar um pouco esta problemática da transição:
Tentando concluir