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quinta-feira, 17 de outubro de 2002

Agricultura Ecológica e Agricultura Familiar

 


Agricultura Ecológica e Agricultura Familiar

 Laércio Meirelles[1]

 Crise ambiental, revolução verde e a busca de alternativas.

Vivemos hoje em uma conjuntura de profunda crise ambiental. É verdade que crises ambientais já ocorreram em outros momentos da história da humanidade, mas nunca com a dimensão planetária da atual. Os números mostram que nosso modelo de desenvolvimento e a forma como pressionamos os recursos naturais não são multiplicáveis por mais um século. Os sintomas dramáticos desta problemática ambiental se apresentam em várias áreas, como por exemplo:
                                i.           Na elevação constante e gradual da temperatura do planeta nas últimas décadas, conseqüência da emissão desenfreada de gases que provocam o efeito estufa. Nos últimos 50 anos a temperatura média do planeta tem subido a razão de 0,2°C por década[2];
                              ii.            Na perda da biodiversidade. Segundo alguns autores a maior erosão genética que o planeta já viu, com o desaparecimento de aproximadamente 74 espécies por dia[3];
                            iii.            Na perda de solos por erosão, estimada em cerca de 10 toneladas de solo por hectare/ano em nosso continente[4];
                            iv.            Diminuição dos mananciais de água doce. Cerca de 190 bilhões de metros cúbicos de água são transferidos anualmente, via irrigação, do continente para os oceanos.[5]
A agricultura já foi apontada, em documentos oficiais da FAO, como a maior vilã da contaminação do planeta. Em que pese a ironia de uma afirmação desta natureza[6], é óbvio que as práticas agrícolas adotadas em escala mundial com o advento da mal denominada “revolução verde” tem contribuído decisivamente para o quadro de degradação ambiental que emoldura o mundo contemporâneo.
O uso de maquinário pesado, as sementes de alto rendimento, a adubação de alta solubilidade e o uso de agrotóxicos conformam a base tecnológica da revolução verde. As conseqüências ambientais, sociais, políticas e econômicas destas práticas são conhecidas e já descritas inúmeras vezes[7]. Erosão dos solos, contaminação das águas, êxodo rural, dependência da agricultura do complexo agroindustrial que a comprime, mortes por intoxicação causadas por agrotóxicos e descapitalização do setor rural são apenas exemplos de uma ampla gama de conseqüências negativas que vem sendo amplamente debatidas.
É interessante observar que contemporâneo ao aparecimento das “evidências científicas” que serviram de base às práticas acima referidas, surgiu vozes discordantes que profetizavam os problemas que poderiam advir da utilização generalizada destas mesmas práticas[8].
No século passado, à medida que distintos autores descreviam os problemas que a quimificação da agricultura poderia acarretar e propunham que a agricultura deveria se basear em práticas mais harmônicas do ponto de vista ambiental e menos dependentes do setor urbano-industrial, foi se configurando um campo do conhecimento que recebeu distintas denominações.
Como ponto de partida, estas distintas escolas de pensamento possuem a crítica aos métodos da revolução verde e a busca de uma prática agrícola ambientalmente sadia e preocupada com as conseqüências sociais destas mesmas práticas. Aqui vamos assumir Agricultura Ecológica como sendo o termo que unifica estas distintas escolas de pensamento[9], entendendo que seus pontos comuns superam eventuais divergências de enfoque.
Sabemos todos ser necessário que a agricultura atenda a exigência crescente de produção de alimentos sem deteriorar as condições ecológicas que a tornam possível. Esta busca deve ser de todos aqueles comprometidos com a sustentabilidade do planeta, respeitando o direito que as gerações futuras têm a uma base de recursos naturais que garanta a satisfação de suas necessidades.
                                                                                             Agricultura Ecológica e Agricultura Familiar
A Agricultura Ecológica se propõe a superar o falso dilema entre a necessidade crescente de  produção de alimentos e o imperativo contemporâneo da preservação ambiental, buscando ser o vaso comunicante entre um e outro. E o agricultor familiar pode e deve se constituir como o principal sujeito na construção desta ponte.
As tecnologias modernas não foram geradas tendo como alvo a viabilização da Agricultura Familiar, nem buscaram se adaptar às situações culturais, sociais e agronômicas da maior parte dos agricultores familiares. Tampouco a geração destas tecnologias partiu de um diálogo com o conhecimento acumulado pelos agricultores em sua relação com o agroecossistema no qual desenvolvem seu trabalho.
O monocultivo e a lógica das “vantagens comparativas” violentam uma cultura baseada na diversidade e no auto-abastecimento. O uso intensivo de capital exclui parcela significativa dos agricultores familiares do acesso às tecnologias “modernas”. O maquinário pesado e as sementes de alto rendimento não são compatíveis com solos de alta declividade e baixa fertilidade natural, comuns a maior parte das unidades familiares de produção.
A despeito da situação marginal a qual foi historicamente relegada, a Agricultura Familiar[10] segue cumprindo um papel da maior relevância no que tange à produção de alimentos, ocupação de mão-de-obra, manutenção da biodiversidade agrícola e preservação da paisagem.
É neste ponto que acontece a maior aproximação entre a agricultura familiar e a agricultura ecológica. A pressão ambiental se faz sentir com mais força sobre aqueles que se relacionam mais diretamente com a natureza e historicamente não possuíram capital suficiente para moldá-la a determinado pacote tecnológico, utilizando-o apenas parcialmente.
A alternativa foi desenvolver mecanismos de adaptação e convivência com o ecossistema trabalhado. Em um processo de observação da natureza e geração de tecnologias por um lado e tentativa e erro por outro, os agricultores familiares desenvolveram um sistema produtivo que guarda muitas relações com alguns princípios básicos da Agricultura Ecológica.

Princípios básicos da Agricultura Ecológica

Estes princípios se assentam na observação da Natureza como a matriz geradora dos conhecimentos necessários para a conformação de Agroecossistemas sustentáveis[11].
Particularmente importante é a observação da arquitetura vegetal e da produção principal do ecossistema original, da sua capacidade de produção de biomassa, e da forma como modera a energia incidente, principalmente na forma de chuva e sol. Solo permanentemente coberto, consorciação de culturas, estímulo à reciclagem de nutrientes e fomento da biodiversidade são alguns exemplos de procedimentos que podem ser adotados a partir da observação de boa parte dos ecossistemas naturais.
Agroecossistemas bem desenhados, produtivos e sustentáveis, se assemelham ou mesmo se confundem com ecossistemas naturais. Sistemas agrícolas bem adaptados necessariamente são manejados para que a energia incidente seja moderada no sentido de gerar o máximo de trabalho e o mínimo de poluição. Um ecossistema de subtrópico úmido, por exemplo, com insolação e pluviosidade abundantes, nos sugere a conformação de um agroecossistema com uma alta diversidade, espacial e temporal, permitindo que distintas espécies aproveitem ao máximo o sol e a água, gerando biomassa (trabalho) e não erosão (poluição).
Para que a intervenção a ser feita o seja com a elegância necessária, é importante a observação cuidadosa do déficit limitante dentre os três componentes do triângulo ambiental básico: água, luz e nutrientes. É o manejo eficiente do déficit limitante, através de práticas de redução ou convivência,[12] que determinará se nossa intervenção irá degradar ou fomentar a vida.

A intercessão evidente
Algumas características do sistema de produção da Agricultura Familiar, como já observado anteriormente, encerram estes mesmos princípios. Em que pese a diversidade existente dentro desta categoria de Agricultura Familiar, podemos afirmar que, em relação a agricultura patronal, ela possui uma maior tendência:
                                i.            Ao desenvolvimento de sistemas de produção diversificados, muitas vezes com o desenho de agroecossistemas muito próximos ao ecossistema original;
                              ii.            A privilegiarem práticas que estimulem a reciclagem de nutrientes como a integração de distintos cultivos, dispondo-os em consórcios propriamente ditos ou em forma de mosaico;
                            iii.            Ao uso de sementes próprias;
                            iv.            A serem relativamente mais independentes em relação a insumos externos;
                              v.            Ao uso de insumos locais e regionais;
                            vi.            A valorização da produção para o auto-consumo, sendo relativamente independentes do mercado no que diz respeito a sua reprodução social;
Estes exemplos de estratégias de intervenção, dentre outros que poderiam ser citados, nos permitem afirmar que a agricultura familiar de base ecológica pode se constituir no alicerce para a construção de um modelo de desenvolvimento rural sustentável e integral.

Para além do verde da verdadeira revolução

Existe um certo consenso que a Agricultura Ecológica não se limita apenas aos aspectos vinculados à sustentabilidade ecológica do sistema de produção, mas é uma abordagem que incorpora também cuidados relativos aos problemas sociais. Nesta perspectiva Altieri afirma que:
“As necessidades para se desenvolver uma agricultura sustentável não são apenas biológicas ou técnicas, mas também sociais, econômicas e políticas, ilustrando os fatores necessários para se criar uma sociedade sustentável. É inconcebível promover mudanças ecológicas no setor agrícola sem a defesa de mudanças comparáveis nas outras áreas correlacionadas da sociedade”.[13]
É obvio que um agroecossistema pode ser impactado não apenas por processos naturais, mas também por questões relativas ao seu entorno cultural ou sócio-econômico.
Neste sentido é importante que, conjugado aos esforços de redesenho dos sistemas produtivos em direção a bases mais ecológicas, também as redes sócio-econômicas sejam redesenhadas para darem o suporte necessário à mudança de enfoque técnico-ambiental.
Assim, se torna imprescindível que os agricultores familiares busquem criar estes mecanismos que por um lado propiciem maior segurança a esta opção pela agricultura ecológica e por outro contribuam com a construção de uma sociedade mais justa e equilibrada.
Alguns destes mecanismos já vêm sendo adotados por um número significativo de agricultores ecologistas. Podemos citar alguns exemplos:

a.       Agregação de valor à produção primária, com a criação de agroindústrias de pequeno porte, descentralizadas e inseridas harmoniosamente no sistema de produção[14];
b.      Espaços de organização democráticos e participativos, que permitam a troca de experiências e informações, a busca de soluções conjuntas para problemas comuns e gerem capacidade de interlocução com o poder público e com outros atores sociais;
c.       Busca de canais de comercialização que minimizem os elos de intermediação que separam agricultor e consumidor, favoreçam a aproximação e o intercâmbio entre o rural e o urbano, melhorem os ingressos dos agricultores e estimulem a produção com bases ecológicas[15].

Concluindo

No passado recente, a Agricultura Ecológica era vista como um sonho romântico de alguns, sem embasamento científico e incapaz de produzir os alimentos e fibras exigidas pela civilização contemporânea. Hoje ela vem se firmando como a única possibilidade concreta de aliarmos produção crescente e meio ambiente cuidado.
Durante as últimas décadas a construção deste modelo de agricultura se deu no seio de organizações da sociedade civil, por parte de ONG’s, organizações de agricultores, consumidores, movimentos sociais.
Nos últimos anos, cada vez mais o Estado tem se preocupado em apoiar estas iniciativas. De uma maneira tímida e incipiente, mas é possível notar que ações neste sentido vêm sendo adotadas. É dentro deste quadro, de premente necessidade e ainda pouco apoio do Estado, que a Agricultura Ecológica vem se desenvolvendo. Se esta forma de entendimento dos processos agrícolas atingiu à dimensão que hoje têm, é função de seus méritos intrínsecos, já que não conta com o aparato de apoio que implementou a revolução verde.
           Quando falamos em méritos intrínsecos estamos nos referindo ao fato da Agricultura Ecológica trazer em seu bojo um componente de resgate da autonomia da agricultura, de possibilitar a reprodução econômica e social da Agricultura Familiar, além de universalizar os benefícios da produção agropecuária, não os limitando a poderosos grupos de interesses. E, mais importante, nos permite buscar uma nova relação com a natureza, nos colocando como um elemento mais a se integrar, como nos diria José Lutzenberger, nesta maravilhosa sinfonia da vida.



[1] Engenheiro Agrônomo. Coordenador do Centro Ecológico de Ipê, ONG que desde 1985 trabalha com assessoria e formação em Agricultura Ecológica.
[2] Maiores detalhes em:  The Ecologist Report – Climate Change, The Ecologist, encarte especial, novembro de 2001
[3] Wilson, E. Diversidade da vida, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, página 302.
[4] Gliessman, Stephen. Agroecologia – Processos Ecológicos em Agricultura Sustentável, Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2000, página 42.
[5] SAHAGIAN e colaboradores, citados por Gliessman, Stephen. obra citada, página 44.
[6] Sobre este assunto existe um interessante artigo publicado no caderno campo e lavora de Zero Hora, em 10/05/91, escrito pelo Engenheiro Agrônomo e Florestal Sebastião Pinheiro sobre a Conferência de Den Bosch, realizada em abril deste mesmo ano.
[7] No anuário de 1971 da enciclopédia Larrousse existe um instigante artigo intitulado “O lado sombrio da revolução verde”, onde o autor, Mark Gayn, profetiza boa parte destes problemas, afirmando, a partir de observações feitas na Ásia, que “a revolução verde resulta principalmente no aumento das velhas injustiças”.
[8] Para maiores detalhes ver ALIER, Juan Martinez e SCHLÜPMAN, Klaus. La economia y la ecologia. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.
[9] Para um aprofundamento sobre estas distintas escolas de pensamento ver:   EHLERS, Eduardo. Agricultura sustentável: origens e perspectivas de um novo paradigma, São Paulo: Livros da Terra, 1996.
[10] Sabemos que a definição de Agricultura Familiar é complexa e encerra uma substancial discussão sociológica. Aqui vamos considerar que além da característica básica de utilizar principalmente mão de obra própria, ela se situa como herdeira da agricultura tradicional, camponesa, no que tange a algumas características de produção harmônica com o meio-ambiente e em vários aspectos culturais, mas incorpora, em diferentes graus, o pacote tecnológico proposto pela revolução verde.
[11] Altieri, Miguel. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável, Guaíba: Agropecuária, 2002, página 162.
[12] Para uma definição de práticas de redução ou convivência ver: Resende, Mauro e colaboradores. Pedologia: base para distinção de ambientes, Viçosa: NEPUT, 1997, página 180
[13] Altieri, Miguel. Agroecologia, as bases científicas da agricultura alternativa, Rio de Janeiro: PTA/FASE, 1989.
[14] Meirelles, Ana. Agroindustrialização Ecológica: uma opção para a agricultura familiar. Ipê: Centro Ecológico, 2001
[15] Para maiores detalhes ver sobre redes de comercialização alternativas, ver: SCHMITT, C. J. Tecendo as redes de uma nova agricultura: um estudo socioambiental da Região Serrana do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2001.