Comercialização e certificação de Produtos Agroecológicos [1][2]
Laércio Meirelles[3]
Implícita ou explicitamente, as distintas escolas de pensamento que buscam alternativas sustentáveis para a agricultura reforçam a ligação existente entre processos de mudança técnico-ambientais, e os condicionantes políticos, econômicos e sociais presentes neste processo de transição rumo a uma nova agricultura. A transformação nas formas de circulação, distribuição e consumo do produto agrícola, torna-se assim um componente fundamental no processo de construção de novas relações dos seres humanos, entre si, e destes com a natureza, no âmbito da atividade agrícola. Vejamos alguns exemplos.
Reunidas em Copenhague, em 1993, ONGs, de diferentes países do mundo, definiram Agricultura Sustentável da seguinte maneira:
Um modelo de organização social e econômica baseado em um desenvolvimento eqüitativo e participativo (...) A agricultura é sustentável quando é ecologicamente equilibrada, economicamente viável, socialmente justa, culturalmente apropriada e fundamentada em um conhecimento científico holístico. Ehlers (1996)[i].
Já Altieri (1989)[ii] se expressa da seguinte maneira na busca da mesma definição:
As necessidades para se desenvolver uma agricultura sustentável não são apenas biológicas ou técnicas, mas também sociais, econômicas e políticas, ilustrando os fatores necessários para se criar uma sociedade sustentável. É inconcebível promover mudanças ecológicas no setor agrícola sem a defesa de mudanças comparáveis nas outras áreas correlacionadas da sociedade.”
A IFOAM dá especial ênfase à necessidade de integrar as preocupações ambientais e sociais nas políticas e acordos comerciais, deixando claro que o desenvolvimento econômico, através do comércio, não deveria por em perigo o ambiente nem os direitos sociais, e que deveria fazer parte do conceito holístico do movimento orgânico.
Este tipo de concepção tem se traduzido inclusive em instrumentos de legislação. A instrução normativa 007 de 17 de maio de 1999 do Ministério da Agricultura define Agricultura Orgânica e afirma que esta deve visar também:
d) o fomento da integração efetiva entre agricultor e consumidor final de produtos orgânicos, e o incentivo à regionalização da produção desses produtos orgânicos para os mercados locais.
Nestas definições fica claro que a o ideário agroecológico não se limita a uma mudança nos paradigmas de cunho técnico-científico. Protagonismo popular, respeito a diversidade cultural e implantação de formas de comercialização que beneficiem a população como um todo são alguns exemplos de correlatos importantes e constantemente mencionados
Mas se isto é verdade, porque, na maioria das vezes, os produtos limpos chegam ao mercado pelas vias convencionais, transformando-se em mais um nicho em um mercado já altamente excludente? O caminho assinalado pelas grandes redes de supermercados, pela exportação e pelo preço altamente diferenciado, estará, de fato, sintonizado com o caminho de uma transformação mais abrangente da base social e ecológica de nossa agricultura?
Vários são os fatores que fazem muitos produtores agroecológicos utilizarem "técnicas alternativas", mas optarem por um "mercado convencional". Vamos citar alguns. O acentuado crescimento do mercado de produtos limpos atraiu para o setor uma parcela de empresários, rurais e urbanos, a maioria não identificada com o que aqui denominamos de ideário agroecológico. A necessidade premente de reprodução econômica da Agricultura Familiar também obriga este setor e seus aliados a buscarem alguma forma de inserção no mercado, muitas vezes não acompanhada por uma reflexão sobre o papel deste mercado na construção de um desenvolvimento rural sustentável. A falta de apoio público para o redesenho das redes de comércio hoje estabelecidas, centralizadas e oligopolizadas, seguramente também contribui para este quadro.
Isto posto podemos avançar e colocar aquela que pode ser considerada a frase síntese da argumentação que aqui queremos desenvolver: As estratégias de comercialização e certificação de produtos agroecológicos devem buscar coerência com os princípios que originaram o próprio “movimento agroecológico". Em outras palavras, é importante articular a mudança tecnológica à transformação das relações de produção, circulação e consumo que sustentam a chamada "agricultura moderna".
O trabalho com Agroecologia deve ter como pressuposto a percepção que o mercado é criatura e não criador, como quer nos fazer crer a escola econômica neoliberal. Em outras palavras o mercado e suas regras não são uma realidade absoluta, a qual devemos nos moldar, mas um conjunto de relações historicamente construídas, que tanto podem dominar como ser dominadas por outras práticas sociais.
A forma como vem se dando a certificação é um exemplo emblemático de como a chegada ao mercado pode ser acompanhada de práticas incoerentes com alguns dos princípios e das percepções que se aglutinam em torno do conceito de Agroecologia. De um pressuposto lógico e pertinente do direito do consumidor a ter garantia da qualidade agroecológica do produto que adquire, se derivou para a defesa de uma estrutura burocrática e policialesca de certificação, que trabalha com “inspeções” e parte de uma premissa de suspeição dos agricultores. Nosso entendimento é que esta estrutura não guarda relação com o princípio do resgate dos agricultores e das agricultoras como sujeitos do processo produtivo.
Preços altamente diferenciados, circulação planetária de mercadorias e o desenho de agroecossistemas a partir da lógica das “vantagens comparativas”, são outros exemplos de como a presença no mercado de maneira mais ativa acaba por fazer com que iniciativas que surgem buscando um novo modelo de desenvolvimento rural com base nos princípios da agroecologia, se adequam ao mercado e se afastam, em uma velocidade nem sempre perceptível, de suas plataformas iniciais.
Mas este caminho, de excessivo apreço às “leis de mercado” e de conseqüente erosão dos princípios agroecológicos, não é, felizmente, o único. Experiências em curso demonstram que é possível conciliar uma presença ativa no mercado e coerência com estes mesmos princípios.
No Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul já há alguns anos toma forma e corpo a Rede Ecovida de Agroecologia, uma instancia de articulação entre distintos atores que atuam no campo da Agroecologia. Dentre outros, um dos objetivos da Rede é promover a certificação participativa. Nesta perspectiva o reconhecimento demandado pelo agricultor e a credibilidade exigida pelo consumidor são gerados com uma metodologia que propicia a participação de todos envolvidos e interessados na produção de alimentos e fibras.
No âmbito da Rede Ecovida de Agroecologia a certificação tem sido trabalhada como um processo pedagógico onde agricultores, técnicos e consumidores se integram no intento de buscarem uma expressão pública da qualidade do trabalho que desenvolvem.
Também o redesenho de redes de comercialização tem ocorrido em diversos locais[iv]. A busca por equipamentos de comercialização que permitam tanto a aproximação entre agricultores e consumidores quanto o exercício da transparência e da solidariedade tem crescido.
São inúmeras feiras locais e regionais, iniciativas de entregas de cestas domiciliares, pontos de venda organizados tanto pelo poder público quanto por associações de bairros ou sindicatos, abastecimento de mercados institucionais e várias outras iniciativas de comercialização que apontam para o redesenho citado acima.
Em alguns locais começa a se configurar o que podemos denominar Redes Solidárias de Produção e Circulação de Produtos Ecológicos, onde distintos atores, envolvidos com diferentes etapas do processo produtivo, se articulam com o intuito de se fortalecerem mutuamente e criarem um espaço onde as relações de mercado se submetem a um conjunto de princípios e valores mais amplos. Estas redes estão presentes, de maneira mais ou menos sofisticada, sempre que a construção do mercado de produtos agroecológicos se submete à lógica da inclusão social e da cooperação. Guardam, portanto, maior relação com os conceitos relatados no início do texto.
Para que a certificação participativa e as Redes Solidárias de Produção e Circulação de Produtos Agroecológicos se estruturem e se consolidem é fundamental a formulação e execução de políticas públicas que apóiem e estimulem iniciativas que configuram estas redes. Em anexo apontamos algumas sugestões, mas de uma maneira geral podemos dizer que necessitamos da construção de um novo marco jurídico-institucional que fortaleça, efetivamente, a construção de relações mais eqüitativas entre produtores, processadores, distribuidores e consumidores.
Para concluir, salientamos que para muitos a construção de um mercado de produtos agroecológicos deve passar por iniciativas desta natureza. Em um debate conceitual que não cabe nestes breves comentários, estes poderiam afirmar que o mercado de produtos limpos que vem crescendo e sendo absorvido cada vez mais pelas redes convencionais de comercialização é na verdade o mercado de produtos orgânicos. E que o mercado de produtos agroecológicos deve necessariamente passar pela construção de espaços de circulação de mercadorias que busquem a inclusão social e o benefício de todos os envolvidos, e que estes espaços sejam pautados por valores como transparência, solidariedade, complementaridade e integração ente produtor e consumidor.
[1] Este texto foi considerado preparatório e apresentado para discussão antes e durante a realização do ENA – Encontro Nacional de Agroecologia, realizado em julho de 2002, no Rio de Janeiro
[2] Aqui respeitamos o termo empregado pela Coordenação do ENA para definir o objeto do artigo. Sabemos que a expressão “produtos agroecológicos” gera controvérsias, que não serão discutidas aqui.
[3] Engenheiro Agrônomo. Coordenador do Centro Ecológico de Ipê, ONG que desde 1985 assessora agricultores em Agricultura Ecológica.
[4] Sigla em inglês para Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica.
[i] Ehlers, Eduardo. Agricultura sustentável: origens e perspectivas de um novo paradigma. São Paulo: Livros da Terra, 1996.
[ii] Altieri, Miguel. Agroecologia, as bases científicas da agricultura alternativa, Rio de Janeiro: PTA/FASE, 1989.
[iii] Geier, Bernward, “Desenvolvimento local num mercado global”. http://www.ifoam.org/orgagri/mercado_global.html consultado em 29 de abril de 2002
[iv] Para um estudo de caso do processo de redesenho das redes ver SCHMITT, C. J. Tecendo as redes de uma nova agricultura: um estudo socioambiental da Região Serrana do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2001. Doutorado em Sociologia - Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2001.
ANEXO
SUGESTÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE ESTÍMULO A ESTRUTURAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE REDES SOLIDÁRIAS DE PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE PRODUTOS AGROECOLÓGICOS E DE MECANISMOS DE CERTIFICAÇÃO PARTICIPATIVA.
- A criação de marcos jurídicos que permitam a presença ativa no mercado de Agricultores Familiares organizados em pequenos grupos;
- A adequação das regras de certificação de produtos limpos às diferentes categorias de produtores e às características ecológicas, culturais e sociais em que se encontram inseridos, ao menos no que diz respeito ao mercado interno e, principalmente, às Redes Solidárias;
- A diferenciação do ICMS para Produtos Agroecológicos, estimulando a produção e o consumo;
- Apoio ao desenvolvimento de mercados locais, com o estímulo ao surgimento de equipamentos de abastecimento popular que aproximem o agricultor do consumidor;
- A incorporação de produtos oriundos da Agricultura Familiar Agroecológica no mercado institucional;
- Políticas de crédito diferenciado para a produção, transformação e comercialização de Produtos Agroecológicos;