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quinta-feira, 17 de outubro de 2002

Agricultura Ecológica e Agricultura Familiar

 


Agricultura Ecológica e Agricultura Familiar

 Laércio Meirelles[1]

 Crise ambiental, revolução verde e a busca de alternativas.

Vivemos hoje em uma conjuntura de profunda crise ambiental. É verdade que crises ambientais já ocorreram em outros momentos da história da humanidade, mas nunca com a dimensão planetária da atual. Os números mostram que nosso modelo de desenvolvimento e a forma como pressionamos os recursos naturais não são multiplicáveis por mais um século. Os sintomas dramáticos desta problemática ambiental se apresentam em várias áreas, como por exemplo:
                                i.           Na elevação constante e gradual da temperatura do planeta nas últimas décadas, conseqüência da emissão desenfreada de gases que provocam o efeito estufa. Nos últimos 50 anos a temperatura média do planeta tem subido a razão de 0,2°C por década[2];
                              ii.            Na perda da biodiversidade. Segundo alguns autores a maior erosão genética que o planeta já viu, com o desaparecimento de aproximadamente 74 espécies por dia[3];
                            iii.            Na perda de solos por erosão, estimada em cerca de 10 toneladas de solo por hectare/ano em nosso continente[4];
                            iv.            Diminuição dos mananciais de água doce. Cerca de 190 bilhões de metros cúbicos de água são transferidos anualmente, via irrigação, do continente para os oceanos.[5]
A agricultura já foi apontada, em documentos oficiais da FAO, como a maior vilã da contaminação do planeta. Em que pese a ironia de uma afirmação desta natureza[6], é óbvio que as práticas agrícolas adotadas em escala mundial com o advento da mal denominada “revolução verde” tem contribuído decisivamente para o quadro de degradação ambiental que emoldura o mundo contemporâneo.
O uso de maquinário pesado, as sementes de alto rendimento, a adubação de alta solubilidade e o uso de agrotóxicos conformam a base tecnológica da revolução verde. As conseqüências ambientais, sociais, políticas e econômicas destas práticas são conhecidas e já descritas inúmeras vezes[7]. Erosão dos solos, contaminação das águas, êxodo rural, dependência da agricultura do complexo agroindustrial que a comprime, mortes por intoxicação causadas por agrotóxicos e descapitalização do setor rural são apenas exemplos de uma ampla gama de conseqüências negativas que vem sendo amplamente debatidas.
É interessante observar que contemporâneo ao aparecimento das “evidências científicas” que serviram de base às práticas acima referidas, surgiu vozes discordantes que profetizavam os problemas que poderiam advir da utilização generalizada destas mesmas práticas[8].
No século passado, à medida que distintos autores descreviam os problemas que a quimificação da agricultura poderia acarretar e propunham que a agricultura deveria se basear em práticas mais harmônicas do ponto de vista ambiental e menos dependentes do setor urbano-industrial, foi se configurando um campo do conhecimento que recebeu distintas denominações.
Como ponto de partida, estas distintas escolas de pensamento possuem a crítica aos métodos da revolução verde e a busca de uma prática agrícola ambientalmente sadia e preocupada com as conseqüências sociais destas mesmas práticas. Aqui vamos assumir Agricultura Ecológica como sendo o termo que unifica estas distintas escolas de pensamento[9], entendendo que seus pontos comuns superam eventuais divergências de enfoque.
Sabemos todos ser necessário que a agricultura atenda a exigência crescente de produção de alimentos sem deteriorar as condições ecológicas que a tornam possível. Esta busca deve ser de todos aqueles comprometidos com a sustentabilidade do planeta, respeitando o direito que as gerações futuras têm a uma base de recursos naturais que garanta a satisfação de suas necessidades.
                                                                                             Agricultura Ecológica e Agricultura Familiar
A Agricultura Ecológica se propõe a superar o falso dilema entre a necessidade crescente de  produção de alimentos e o imperativo contemporâneo da preservação ambiental, buscando ser o vaso comunicante entre um e outro. E o agricultor familiar pode e deve se constituir como o principal sujeito na construção desta ponte.
As tecnologias modernas não foram geradas tendo como alvo a viabilização da Agricultura Familiar, nem buscaram se adaptar às situações culturais, sociais e agronômicas da maior parte dos agricultores familiares. Tampouco a geração destas tecnologias partiu de um diálogo com o conhecimento acumulado pelos agricultores em sua relação com o agroecossistema no qual desenvolvem seu trabalho.
O monocultivo e a lógica das “vantagens comparativas” violentam uma cultura baseada na diversidade e no auto-abastecimento. O uso intensivo de capital exclui parcela significativa dos agricultores familiares do acesso às tecnologias “modernas”. O maquinário pesado e as sementes de alto rendimento não são compatíveis com solos de alta declividade e baixa fertilidade natural, comuns a maior parte das unidades familiares de produção.
A despeito da situação marginal a qual foi historicamente relegada, a Agricultura Familiar[10] segue cumprindo um papel da maior relevância no que tange à produção de alimentos, ocupação de mão-de-obra, manutenção da biodiversidade agrícola e preservação da paisagem.
É neste ponto que acontece a maior aproximação entre a agricultura familiar e a agricultura ecológica. A pressão ambiental se faz sentir com mais força sobre aqueles que se relacionam mais diretamente com a natureza e historicamente não possuíram capital suficiente para moldá-la a determinado pacote tecnológico, utilizando-o apenas parcialmente.
A alternativa foi desenvolver mecanismos de adaptação e convivência com o ecossistema trabalhado. Em um processo de observação da natureza e geração de tecnologias por um lado e tentativa e erro por outro, os agricultores familiares desenvolveram um sistema produtivo que guarda muitas relações com alguns princípios básicos da Agricultura Ecológica.

Princípios básicos da Agricultura Ecológica

Estes princípios se assentam na observação da Natureza como a matriz geradora dos conhecimentos necessários para a conformação de Agroecossistemas sustentáveis[11].
Particularmente importante é a observação da arquitetura vegetal e da produção principal do ecossistema original, da sua capacidade de produção de biomassa, e da forma como modera a energia incidente, principalmente na forma de chuva e sol. Solo permanentemente coberto, consorciação de culturas, estímulo à reciclagem de nutrientes e fomento da biodiversidade são alguns exemplos de procedimentos que podem ser adotados a partir da observação de boa parte dos ecossistemas naturais.
Agroecossistemas bem desenhados, produtivos e sustentáveis, se assemelham ou mesmo se confundem com ecossistemas naturais. Sistemas agrícolas bem adaptados necessariamente são manejados para que a energia incidente seja moderada no sentido de gerar o máximo de trabalho e o mínimo de poluição. Um ecossistema de subtrópico úmido, por exemplo, com insolação e pluviosidade abundantes, nos sugere a conformação de um agroecossistema com uma alta diversidade, espacial e temporal, permitindo que distintas espécies aproveitem ao máximo o sol e a água, gerando biomassa (trabalho) e não erosão (poluição).
Para que a intervenção a ser feita o seja com a elegância necessária, é importante a observação cuidadosa do déficit limitante dentre os três componentes do triângulo ambiental básico: água, luz e nutrientes. É o manejo eficiente do déficit limitante, através de práticas de redução ou convivência,[12] que determinará se nossa intervenção irá degradar ou fomentar a vida.

A intercessão evidente
Algumas características do sistema de produção da Agricultura Familiar, como já observado anteriormente, encerram estes mesmos princípios. Em que pese a diversidade existente dentro desta categoria de Agricultura Familiar, podemos afirmar que, em relação a agricultura patronal, ela possui uma maior tendência:
                                i.            Ao desenvolvimento de sistemas de produção diversificados, muitas vezes com o desenho de agroecossistemas muito próximos ao ecossistema original;
                              ii.            A privilegiarem práticas que estimulem a reciclagem de nutrientes como a integração de distintos cultivos, dispondo-os em consórcios propriamente ditos ou em forma de mosaico;
                            iii.            Ao uso de sementes próprias;
                            iv.            A serem relativamente mais independentes em relação a insumos externos;
                              v.            Ao uso de insumos locais e regionais;
                            vi.            A valorização da produção para o auto-consumo, sendo relativamente independentes do mercado no que diz respeito a sua reprodução social;
Estes exemplos de estratégias de intervenção, dentre outros que poderiam ser citados, nos permitem afirmar que a agricultura familiar de base ecológica pode se constituir no alicerce para a construção de um modelo de desenvolvimento rural sustentável e integral.

Para além do verde da verdadeira revolução

Existe um certo consenso que a Agricultura Ecológica não se limita apenas aos aspectos vinculados à sustentabilidade ecológica do sistema de produção, mas é uma abordagem que incorpora também cuidados relativos aos problemas sociais. Nesta perspectiva Altieri afirma que:
“As necessidades para se desenvolver uma agricultura sustentável não são apenas biológicas ou técnicas, mas também sociais, econômicas e políticas, ilustrando os fatores necessários para se criar uma sociedade sustentável. É inconcebível promover mudanças ecológicas no setor agrícola sem a defesa de mudanças comparáveis nas outras áreas correlacionadas da sociedade”.[13]
É obvio que um agroecossistema pode ser impactado não apenas por processos naturais, mas também por questões relativas ao seu entorno cultural ou sócio-econômico.
Neste sentido é importante que, conjugado aos esforços de redesenho dos sistemas produtivos em direção a bases mais ecológicas, também as redes sócio-econômicas sejam redesenhadas para darem o suporte necessário à mudança de enfoque técnico-ambiental.
Assim, se torna imprescindível que os agricultores familiares busquem criar estes mecanismos que por um lado propiciem maior segurança a esta opção pela agricultura ecológica e por outro contribuam com a construção de uma sociedade mais justa e equilibrada.
Alguns destes mecanismos já vêm sendo adotados por um número significativo de agricultores ecologistas. Podemos citar alguns exemplos:

a.       Agregação de valor à produção primária, com a criação de agroindústrias de pequeno porte, descentralizadas e inseridas harmoniosamente no sistema de produção[14];
b.      Espaços de organização democráticos e participativos, que permitam a troca de experiências e informações, a busca de soluções conjuntas para problemas comuns e gerem capacidade de interlocução com o poder público e com outros atores sociais;
c.       Busca de canais de comercialização que minimizem os elos de intermediação que separam agricultor e consumidor, favoreçam a aproximação e o intercâmbio entre o rural e o urbano, melhorem os ingressos dos agricultores e estimulem a produção com bases ecológicas[15].

Concluindo

No passado recente, a Agricultura Ecológica era vista como um sonho romântico de alguns, sem embasamento científico e incapaz de produzir os alimentos e fibras exigidas pela civilização contemporânea. Hoje ela vem se firmando como a única possibilidade concreta de aliarmos produção crescente e meio ambiente cuidado.
Durante as últimas décadas a construção deste modelo de agricultura se deu no seio de organizações da sociedade civil, por parte de ONG’s, organizações de agricultores, consumidores, movimentos sociais.
Nos últimos anos, cada vez mais o Estado tem se preocupado em apoiar estas iniciativas. De uma maneira tímida e incipiente, mas é possível notar que ações neste sentido vêm sendo adotadas. É dentro deste quadro, de premente necessidade e ainda pouco apoio do Estado, que a Agricultura Ecológica vem se desenvolvendo. Se esta forma de entendimento dos processos agrícolas atingiu à dimensão que hoje têm, é função de seus méritos intrínsecos, já que não conta com o aparato de apoio que implementou a revolução verde.
           Quando falamos em méritos intrínsecos estamos nos referindo ao fato da Agricultura Ecológica trazer em seu bojo um componente de resgate da autonomia da agricultura, de possibilitar a reprodução econômica e social da Agricultura Familiar, além de universalizar os benefícios da produção agropecuária, não os limitando a poderosos grupos de interesses. E, mais importante, nos permite buscar uma nova relação com a natureza, nos colocando como um elemento mais a se integrar, como nos diria José Lutzenberger, nesta maravilhosa sinfonia da vida.



[1] Engenheiro Agrônomo. Coordenador do Centro Ecológico de Ipê, ONG que desde 1985 trabalha com assessoria e formação em Agricultura Ecológica.
[2] Maiores detalhes em:  The Ecologist Report – Climate Change, The Ecologist, encarte especial, novembro de 2001
[3] Wilson, E. Diversidade da vida, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, página 302.
[4] Gliessman, Stephen. Agroecologia – Processos Ecológicos em Agricultura Sustentável, Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2000, página 42.
[5] SAHAGIAN e colaboradores, citados por Gliessman, Stephen. obra citada, página 44.
[6] Sobre este assunto existe um interessante artigo publicado no caderno campo e lavora de Zero Hora, em 10/05/91, escrito pelo Engenheiro Agrônomo e Florestal Sebastião Pinheiro sobre a Conferência de Den Bosch, realizada em abril deste mesmo ano.
[7] No anuário de 1971 da enciclopédia Larrousse existe um instigante artigo intitulado “O lado sombrio da revolução verde”, onde o autor, Mark Gayn, profetiza boa parte destes problemas, afirmando, a partir de observações feitas na Ásia, que “a revolução verde resulta principalmente no aumento das velhas injustiças”.
[8] Para maiores detalhes ver ALIER, Juan Martinez e SCHLÜPMAN, Klaus. La economia y la ecologia. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.
[9] Para um aprofundamento sobre estas distintas escolas de pensamento ver:   EHLERS, Eduardo. Agricultura sustentável: origens e perspectivas de um novo paradigma, São Paulo: Livros da Terra, 1996.
[10] Sabemos que a definição de Agricultura Familiar é complexa e encerra uma substancial discussão sociológica. Aqui vamos considerar que além da característica básica de utilizar principalmente mão de obra própria, ela se situa como herdeira da agricultura tradicional, camponesa, no que tange a algumas características de produção harmônica com o meio-ambiente e em vários aspectos culturais, mas incorpora, em diferentes graus, o pacote tecnológico proposto pela revolução verde.
[11] Altieri, Miguel. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável, Guaíba: Agropecuária, 2002, página 162.
[12] Para uma definição de práticas de redução ou convivência ver: Resende, Mauro e colaboradores. Pedologia: base para distinção de ambientes, Viçosa: NEPUT, 1997, página 180
[13] Altieri, Miguel. Agroecologia, as bases científicas da agricultura alternativa, Rio de Janeiro: PTA/FASE, 1989.
[14] Meirelles, Ana. Agroindustrialização Ecológica: uma opção para a agricultura familiar. Ipê: Centro Ecológico, 2001
[15] Para maiores detalhes ver sobre redes de comercialização alternativas, ver: SCHMITT, C. J. Tecendo as redes de uma nova agricultura: um estudo socioambiental da Região Serrana do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2001.

segunda-feira, 5 de agosto de 2002

Manejo Agroflorestal de Bananais

             Manejo Agroflorestal de Bananais
                                                      Laércio Meirelles [1]


INTRODUÇÃO
A idéia do presente texto é relatar brevemente uma experiência de Manejo Agroflorestal de Bananais desenvolvida na região de Torres, Litoral Norte do RS, conectando este relato com alguns dos princípios que têm norteado os trabalhos com Agricultura Ecológica em nossa instituição. Depois de uma breve descrição da região, relatamos sinteticamente o manejo desenvolvido por um bananicultor e passamos a listar alguns princípios da Agricultura Ecológica que cremos estarem pragmatizados nesta experiência.
Uma leitura cuidadosa permitirá que se estabeleça a relação entre os princípios elencados e as práticas aqui descritas.


A REGIÃO
A área que denominamos de Região de Torres compreende os municípios de Torres, Três Cachoeiras, Morrinhos do Sul, Mampituba e Dom Pedro de Alcântara, e compõem a micro-região homogênea 310-Litoral Setentrional do Rio Grande do Sul.
A cobertura vegetal originária desta região é a Floresta ombrófila densa, designada também como Floresta Tropical Atlântica. A média de precipitação anual esta entre 1250 a 1500 mm, e a temperatura média se encontra entre 18 e 20 o C com um índice médio de ocorrência de geada de um dia por ano.
As características básicas do meio natural da Região evidenciam a importância que representa este ecossistema na diversidade de espécies existentes no Rio Grande do Sul e salientam também o tênue equilíbrio que se apresenta diante da intensa e contínua ação antrópica, necessitando práticas agrícolas adequadas e adaptadas ao ecossistema regional.
A banana, que representa o cultivo mais expressivo em quantidade de área e volume de produção, é cultivada seguindo um padrão tecnológico completamente inadequado a realidade local.
O uso intenso de agrotóxicos, conjuntamente com a inadequação do uso dos solos têm provocado erosão e perda de fertilidade, além de outros problemas associados, tais como a incidência de pragas e doenças. As conseqüências deste padrão tecnológicos já são conhecidas de todos, e mostram-se ainda mais grave na região, já que as características edafoclimáticas e dos sistemas de produção são bastante frágeis, situação que a assistência técnica oficial não tem conseguido enfrentar. 
A resposta da equipe técnica do Centro Ecológico em conjunto com os agricultores das diversas Associações de Agricultores Ecologistas para esta problemática é o Manejo Agroflorestal destes bananais.


O MANEJO DOS BANANAIS
O objetivo primordial é buscar um manejo compatível com a realidade sócio ambiental destes agricultores. Como conseqüências desejadas, destacamos a viabilização econômica destas famílias e a busca da reconstituição sistemática da vegetação original da região, aumentando a cobertura florestal e procurando conectá-la com os remanescentes florestais que ainda existem.
O manejo baseia-se em um primeiro instante, quando possível, na observação do ecossistema natural, com uma posterior intervenção, que deve ser a mínima possível. Esta intervenção além de respeitar a arquitetura vegetal original, deve privilegiar que as espécies exógenas a serem implantadas desempenhem funções análogas às desempenhadas pelas espécies que eram encontradas originalmente.
Uma das famílias que vem adotando este manejo são os Model[2], da comunidade rural do Morro do Coco, município de D. Pedro de Alcântara.
No caso deste bananal, que possui uma área de 2,5 ha, partiu-se de uma realidade de monocultivo, onde a capina e a adubação química eram as regras, para um redesenho deste agroecossistema na busca de se aproximar sucessivamente do ecossistema original.
Em um primeiro momento a utilização de insumos como sementes de espécies exóticas de adubação verde, esterco de aviário e adubos minerais vem sendo considerados necessários. Aplicações de micro-nutrientes, no solo ou via foliar também são realizadas. Como exemplo podemos citar que a recuperação de áreas afetadas com Mal do Panamá (Fusarium oxysporum) está sendo feita com aplicações de cinza no solo, utilizada como fonte de potássio.
Concomitantemente vem sendo introduzidas mudas de espécies vegetais endêmicas na região, bem como se substituindo a capina pelo desbaste seletivo, onde as espécies consideradas apropriadas ao convívio com o bananal começam a repovoar o ambiente. A poda das árvores é outro elemento importante no manejo proposto, permitindo uma boa iluminação para o bananal, mantendo o solo coberto e disponibilizando nutrientes extraídos das camadas mais profundas.
Hoje encontramos nesta área espécies como por exemplo Palmito (Euterpe edulis), Ingá (Inga sp.), Canela-preta (Ocotea catharinensis), Laranjeira-do-mato (Sloanea guianensis), Peroba-vermelha (Aspidosperma olivaceum), Pau-óleo (Copaifera trapezifolia), Canela sassafrás (Ocotea pretiosa), Bicuíba (Virola oleifera), Caxeta-amarela (Nectandra lanceolata), Guarajuva (Buchenavia kleinii) e Guapeva (Pouteria torta), entre outras.
A produção de banana obtida é 30 toneladas/ano, com uma média de 12ton/ha/ano, comercializada principalmente em Feiras de Agricultores Ecologistas. A família Model faz parte da ACERT (Associação dos Colonos Ecologistas da região de Torres). O excedente de sua produção é direcionado para a propriedade da família Fernandes, onde é transformada em banana-passa.

OS PRINCÍPIOS
Com esta breve descrição, podemos elencar alguns princípios da produção ecológica que estão sendo contemplados pelo Manejo feito neste bananal:
1)   Agricultura como fonte de energia, minimizando o uso de petróleo, maximizando uso da energia do sol e buscando a máxima complexação do Agroecossistema.
2)   Sustentabilidade, buscando anular a pressão sobre recursos naturais não renováveis, um eficiente sistema de proteção ao solo, o estimulo aos ciclos de nutrientes e, principalmente, identificando a Natureza como nossa Matriz Tecnológica.
3)   Abordagem de Sistemas, visualizada no redesenho do agroecossistema, no manejo de plantas indicadoras baseado nos princípios da Sucessão Vegetal e na observação dos princípios da Teoria da Trofobiose, que relaciona sanidade com estado fisiológico da planta.
4)   Diversidade, observada na integração e na diversificação do Agroecossistema.
5)   Incorporação do conhecimento local acumulado, com a valorização do saber do Agricultor, resgate de tecnologias brandas e geração conjunta de novas tecnologias.
6)  Protagonismo do agricultor na organização do seu processo produtivo, com a utilização de tecnologias passíveis de serem socializadas e sob controle do agricultor.

    Além de contemplar estes princípios, vinculados à produção propriamente dita, este agricultor também esta inserido em um grupo que mantém relações de cooperação democráticas e participativas, buscando a comercialização através de canais alternativos de circulação de mercadorias e se vinculando a sistemas descentralizados de beneficiamento, agregando valor a sua produção. Todos estes pontos são correlatos importantes à proposta de mudança no padrão tecnológico, no intuito de buscarmos o fortalecimento da Agricultura Familiar.
   Todo este arsenal de alternativas que esta família tem buscado para atingir seus objetivos de reprodução social e viabilização econômica tem trazido alguns “efeitos colaterais” bastante gratificantes:
Ø  redimensionamento da relação ser humano – natureza;
Ø  redesenho do sistema, lhe conferindo um caráter de sustentabilidade nos seus vários aspectos;
Ø  revalorização do agricultor, elevando sua auto-estima;
Ø  resgate do prazer e da dignidade de ser agricultor.


CONCLUSÃO
A convicção que temos é que se este tipo de procedimento com as características agronômicas, econômicas e socioculturais já referidas não é ainda uma realidade estatística, é no mínimo um exemplo para ser observado. Possivelmente é por este caminho que deveremos nos enveredar na busca de uma agricultura mais sadia e de um modelo de desenvolvimento onde a sustentabilidade esteja contemplada em suas múltiplas dimensões.                                                


[1] Engenheiro Agrônomo. Coordenador do Centro Ecológico Ipê, ONG que desde 1985 assessora agricultores em Agricultura Ecológica.
[2] Antônio, Noêmia, Vanusa e Valkíria

quinta-feira, 2 de maio de 2002

Comercialização e certificação de Produtos Agroecológicos

  Comercialização e certificação de Produtos Agroecológicos [1][2]

                                                                                                                                             Laércio Meirelles[3]


 Implícita ou explicitamente, as distintas escolas de pensamento que buscam alternativas sustentáveis para a agricultura reforçam a ligação existente entre processos de mudança técnico-ambientais, e os condicionantes políticos, econômicos e sociais presentes neste processo de transição rumo a uma nova agricultura. A transformação nas formas de circulação, distribuição e consumo do produto agrícola, torna-se assim um componente fundamental no processo de construção de novas relações dos seres humanos, entre si, e destes com a natureza, no âmbito da atividade agrícola. Vejamos alguns exemplos.
Reunidas em Copenhague, em 1993, ONGs, de diferentes países do mundo, definiram Agricultura Sustentável da seguinte maneira:
     Um modelo de organização social e econômica baseado em um desenvolvimento eqüitativo e participativo (...)  A agricultura é sustentável quando é ecologicamente equilibrada, economicamente viável, socialmente justa, culturalmente apropriada e fundamentada em um conhecimento científico holístico. Ehlers (1996)[i].
         Já Altieri (1989)[ii] se expressa da seguinte maneira na busca da mesma definição:
       As necessidades para se desenvolver uma agricultura sustentável não são apenas biológicas ou técnicas, mas também sociais, econômicas e políticas, ilustrando os fatores necessários para se criar uma sociedade sustentável. É inconcebível promover mudanças ecológicas no setor agrícola sem a defesa de mudanças comparáveis nas outras áreas correlacionadas da sociedade.”
Bernward Geier[iii], secretário geral da IFOAM[4] se afirma que:
       A IFOAM dá especial ênfase à necessidade de integrar as preocupações ambientais e sociais nas políticas e acordos comerciais, deixando claro que o desenvolvimento econômico, através do comércio, não deveria por em perigo o ambiente nem os direitos sociais, e que deveria fazer parte do conceito holístico do movimento orgânico.
       Este tipo de concepção tem se traduzido inclusive em instrumentos de legislação. A instrução normativa 007 de 17 de maio de 1999 do Ministério da Agricultura define Agricultura Orgânica e afirma que esta deve visar também:
       d) o fomento da integração efetiva entre agricultor e consumidor final de produtos orgânicos, e o incentivo à regionalização da produção desses produtos orgânicos para os mercados locais.
Nestas definições fica claro que a o ideário agroecológico não se limita a uma mudança nos paradigmas de cunho técnico-científico. Protagonismo popular, respeito a diversidade cultural e implantação de formas de comercialização que beneficiem a população como um todo são alguns exemplos de correlatos importantes e constantemente mencionados
         Mas se isto é verdade, porque, na maioria das vezes, os produtos limpos chegam ao mercado pelas vias convencionais, transformando-se em mais um nicho em um mercado já altamente excludente? O caminho assinalado pelas grandes redes de supermercados, pela exportação e pelo preço altamente diferenciado, estará, de fato, sintonizado com o caminho de uma transformação mais abrangente da base social e ecológica de nossa agricultura?
        Vários são os fatores que fazem muitos produtores agroecológicos utilizarem "técnicas alternativas", mas optarem por um "mercado convencional". Vamos citar alguns. O acentuado crescimento do mercado de produtos limpos atraiu para o setor uma parcela de empresários, rurais e urbanos, a maioria não identificada com o que aqui denominamos de ideário agroecológico. A necessidade premente de reprodução econômica da Agricultura Familiar também obriga este setor e seus aliados a buscarem alguma forma de inserção no mercado, muitas vezes não acompanhada por uma reflexão sobre o papel deste mercado na construção de um desenvolvimento rural sustentável. A falta de apoio público para o redesenho das redes de comércio hoje estabelecidas, centralizadas e oligopolizadas, seguramente também contribui para este quadro.
        Isto posto podemos avançar e colocar aquela que pode ser considerada a frase síntese da argumentação que aqui queremos desenvolver: As estratégias de comercialização e certificação de produtos agroecológicos devem buscar coerência com os princípios que originaram o próprio “movimento agroecológico". Em outras palavras, é importante articular a mudança tecnológica à transformação das relações de produção, circulação e consumo que sustentam a chamada "agricultura moderna".
        O trabalho com Agroecologia deve ter como pressuposto a percepção que o mercado é criatura e não criador, como quer nos fazer crer a escola econômica neoliberal. Em outras palavras o mercado e suas regras não são uma realidade absoluta, a qual devemos nos moldar, mas um conjunto de relações historicamente construídas, que tanto podem dominar como ser dominadas por outras práticas sociais.
A forma como vem se dando a certificação é um exemplo emblemático de como a chegada ao mercado pode ser acompanhada de práticas incoerentes com alguns dos princípios e das percepções que se aglutinam em torno do conceito de Agroecologia. De um pressuposto lógico e pertinente do direito do consumidor a ter garantia da qualidade agroecológica do produto que adquire, se derivou para a defesa de uma estrutura burocrática e policialesca de certificação, que trabalha com “inspeções” e parte de uma premissa de suspeição dos agricultores. Nosso entendimento é que esta estrutura não guarda relação com o princípio do resgate dos agricultores e das agricultoras como sujeitos do processo produtivo.
Preços altamente diferenciados, circulação planetária de mercadorias e o desenho de agroecossistemas a partir da lógica das “vantagens comparativas”, são outros exemplos de como a presença no mercado de maneira mais ativa acaba por fazer com que iniciativas que surgem buscando um novo modelo de desenvolvimento rural com base nos princípios da agroecologia, se adequam ao mercado e se afastam, em uma velocidade nem sempre perceptível, de suas plataformas iniciais.
Mas este caminho, de excessivo apreço às “leis de mercado” e de conseqüente erosão dos princípios agroecológicos, não é, felizmente, o único. Experiências em curso demonstram que é possível conciliar uma presença ativa no mercado e coerência com estes mesmos princípios.
          No Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul já há alguns anos toma forma e corpo a Rede Ecovida de Agroecologia, uma instancia de articulação entre distintos atores que atuam no campo da Agroecologia. Dentre outros, um dos objetivos da Rede é promover a certificação participativa. Nesta perspectiva o reconhecimento demandado pelo agricultor e a credibilidade exigida pelo consumidor são gerados com uma metodologia que propicia a participação de todos envolvidos e interessados na produção de alimentos e fibras.
        No âmbito da Rede Ecovida de Agroecologia a certificação tem sido trabalhada como um processo pedagógico onde agricultores, técnicos e consumidores se integram no intento de buscarem uma expressão pública da qualidade do trabalho que desenvolvem.
      Também o redesenho de redes de comercialização tem ocorrido em diversos locais[iv]. A busca por equipamentos de comercialização que permitam tanto a aproximação entre agricultores e consumidores quanto o exercício da transparência e da solidariedade tem crescido.
        São inúmeras feiras locais e regionais, iniciativas de entregas de cestas domiciliares, pontos de venda organizados tanto pelo poder público quanto por associações de bairros ou sindicatos, abastecimento de mercados institucionais e várias outras iniciativas de comercialização que apontam para o redesenho citado acima.
Em alguns locais começa a se configurar o que podemos denominar Redes Solidárias de Produção e Circulação de Produtos Ecológicos, onde distintos atores, envolvidos com diferentes etapas do processo produtivo, se articulam com o intuito de se fortalecerem mutuamente e criarem um espaço onde as relações de mercado se submetem a um conjunto de princípios e valores mais amplos. Estas redes estão presentes, de maneira mais ou menos sofisticada, sempre que a construção do mercado de produtos agroecológicos se submete à lógica da inclusão social e da cooperação.  Guardam, portanto, maior relação com os conceitos relatados no início do texto.
          Para que a certificação participativa e as Redes Solidárias de Produção e Circulação de Produtos Agroecológicos se estruturem e se consolidem é fundamental a formulação e execução de políticas públicas que apóiem e estimulem iniciativas que configuram estas redes. Em anexo apontamos algumas sugestões, mas de uma maneira geral podemos dizer que necessitamos da construção de um novo marco jurídico-institucional que fortaleça, efetivamente, a construção de relações mais eqüitativas entre produtores, processadores, distribuidores e consumidores.
Para concluir, salientamos que para muitos a construção de um mercado de produtos agroecológicos deve passar por iniciativas desta natureza. Em um debate conceitual que não cabe nestes breves comentários, estes poderiam afirmar que o mercado de produtos limpos que vem crescendo e sendo absorvido cada vez mais pelas redes convencionais de comercialização é na verdade o mercado de produtos orgânicos. E que o mercado de produtos agroecológicos deve necessariamente passar pela construção de espaços de circulação de mercadorias que busquem a inclusão social e o benefício de todos os envolvidos, e que estes espaços sejam pautados por valores como transparência, solidariedade, complementaridade e integração ente produtor e consumidor.





[1] Este texto foi considerado preparatório e apresentado para discussão antes e durante a realização do ENA – Encontro Nacional de Agroecologia, realizado em julho de 2002, no Rio de Janeiro
[2] Aqui respeitamos o termo empregado pela Coordenação do ENA para definir o objeto do artigo. Sabemos que a expressão “produtos agroecológicos” gera controvérsias, que não serão discutidas aqui.
[3] Engenheiro Agrônomo. Coordenador do Centro Ecológico de Ipê, ONG que desde 1985 assessora agricultores em Agricultura Ecológica.
[4] Sigla em inglês para Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica.




[i] Ehlers, Eduardo. Agricultura sustentável: origens e perspectivas de um novo paradigma. São Paulo: Livros da Terra, 1996.
[ii] Altieri, Miguel. Agroecologia, as bases científicas da agricultura alternativa, Rio de Janeiro: PTA/FASE, 1989.
[iii] Geier, Bernward, “Desenvolvimento local num mercado global”. http://www.ifoam.org/orgagri/mercado_global.html consultado em 29 de abril de 2002
[iv] Para um estudo de caso do processo de redesenho das redes ver  SCHMITT, C. J. Tecendo as redes de uma nova agricultura: um estudo socioambiental da Região Serrana do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2001. Doutorado em Sociologia - Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2001.


ANEXO

SUGESTÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE ESTÍMULO A ESTRUTURAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE REDES SOLIDÁRIAS DE PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE PRODUTOS AGROECOLÓGICOS E DE MECANISMOS DE CERTIFICAÇÃO PARTICIPATIVA.

  1. A criação de marcos jurídicos que permitam a presença ativa no mercado de Agricultores Familiares organizados em pequenos grupos;
  2.  A adequação das regras de certificação de produtos limpos às diferentes categorias de produtores e às características ecológicas, culturais e sociais em que se encontram inseridos, ao menos no que diz respeito ao mercado interno e, principalmente, às Redes Solidárias;
  3. A diferenciação do ICMS para Produtos Agroecológicos, estimulando a produção e o consumo;
  4. Apoio ao desenvolvimento de mercados locais, com o estímulo ao surgimento de equipamentos de abastecimento popular que aproximem o agricultor do consumidor;
  5. A incorporação de produtos oriundos da Agricultura Familiar Agroecológica no mercado institucional;
  6. Políticas de crédito diferenciado para a produção, transformação e comercialização de Produtos Agroecológicos;