AGRICULTURA ORGÂNICA
O NASCER DE UM MOVIMENTO
É difícil precisar uma data que determine o surgimento da Agricultura Orgânica. O termo foi cunhado por Rodale em 1948, a partir do trabalho do pesquisador inglês Albert Howard[3], e passou a agregar sob esta denominação um conjunto de reações ao modelo quimista-reducionista adotado majoritariamente pela ciência agronômica.
Mas não podemos atribuir apenas a Howard a paternidade de uma perspectiva que busca incorporar valores ambientais às tecnologias agrícolas. Dezenas de outros autores contribuíram para que desde meados do século XIX, portanto contemporâneo ao próprio desenvolvimento da ciência agronômica, se desenvolvessem escolas de pensamento preocupadas em harmonizar produção agropecuária e meio-ambiente.
È comum também ouvirmos a argumentação de que boa parte das premissas que compõem o conceito de Agricultura Orgânica está presente desde o próprio surgimento das atividades agrícolas. Nesta ótica o novo na agricultura é exatamente o quimismo e não a perspectiva orgânica.
De uma ou outra maneira, o que podemos observar é que desde a década de 70 vêm crescendo consideravelmente a produção e o consumo de fibras e alimentos produzidos sem a utilização de agrotóxicos, adubos químicos de alta solubilidade e sementes modificadas geneticamente.
Este crescimento configura-se hoje como um verdadeiro movimento social, que aqui iremos denominar de Movimento de Agricultura Orgânica. [4]
Sinteticamente, podemos dizer que este Movimento surge desde uma perspectiva que incorpora fortemente, na produção agropecuária, um conjunto de princípios e valores que se orientam por uma filosofia de preservação ambiental e justiça social.
O CONCEITO E A PRÁXIS
São inúmeras as tentativas de conceituação de Agricultura Orgânica. Ainda que muitas vezes sob a égide de outros adjetivos, a busca de um conceito de Agricultura Orgânica sempre gira em torno de alguns eixos comuns. Segundo estes eixos mais ou menos comuns, a agricultura que contempla o ideário do Movimento de Agricultura Orgânica deve:
1. Ser Ambientalmente Sadia
2. Ser Energeticamente positiva
3. Ser Economicamente viável
4. Ser Socialmente justa
5. Ser Culturalmente apropriada
6. Favorecer o protagonismo do agricultor
O crescimento da demanda por produtos limpos levou a configuração de um denominado “mercado de produtos orgânicos”. Esse mercado, em um dado momento, passa a ser encarado como um nicho importante, tornando-se uma significativa fonte de ganhos para os que nele se envolverem.
Esta possibilidade de lucros, aliada a uma lógica que confere ao Mercado um protagonismo nas definições do rumo do próprio desenvolvimento social, tem feito com que os princípios listados acima sejam erodidos por práticas que não guardam relações com estes mesmos princípios. A seguir alguns exemplos destas práticas.
1. Substituição de Insumos
2. Circulação planetária de mercadorias
3. Insumos orgânicos industrializados e mercado globalizado
4. Integração Verde
5. O Mercado como organizador da unidade produtiva
6. Certificação policialesca
Não é difícil observarmos que estas práticas não conduzem a Agricultura Orgânica a contemplar os princípios listados anteriormente, não permitindo, portanto que o movimento alcance os objetivos aos quais ele se propõe em sua gênese.
A seguir tentamos esclarecer porque estas práticas e princípios listados não se coadunam.
1. A perspectiva de uma agricultura ambientalmente sadia pode não se materializar com as comumente utilizadas práticas de substituição de insumos químicos por orgânicos ou naturais. Se esta substituição de insumos não vem acompanhada de um re-desenho do sistema produtivo, então não temos uma mudança de enfoque, e, conseqüentemente, a sustentabilidade ambiental fica comprometida.
2. A circulação planetária de mercadorias juntamente com as práticas de substituição de insumos, não permite a agricultura cumprir com seu papel de produtora de energia. Com um balanço energético negativo, mais uma vez a sustentabilidade está comprometida.
3. Os custos dos insumos “orgânicos" ou “naturais” podem inviabilizar economicamente a agricultura orgânica. Não nos referimos às soluções baratas e caseiras que podem se utilizadas, mas a enorme gama de soluções “naturais” que têm sido apresentadas por um número cada vez maior de indústrias e que apontam para a manutenção de uma relação de dependência da agricultura em relação à indústria e não para um redimensionamento da relação ser humano-natureza. O próprio custo operacional do mercado globalizado é outro limitante para a rentabilidade da agricultura.
4. A dimensão social da Agricultura Orgânica deve se expressar em uma relativa independência do agricultor em relação ao complexo agro-industrial ou às estruturas de intermediação que comprimem os preços agrícolas. Estruturas organizativas democráticas e participativas são outro elemento importante, além da vinculação estreita da proposta orgânica com a agricultura familiar. Agricultores vinculados a grandes indústrias ou atravessadores “orgânicos”, estruturas geridas com pouca ou nenhuma participação do agricultor, produção orgânica em larga escala, onde muitas vezes sequer os direitos do trabalhador são respeitados, definitivamente não são expressões de um modelo que tem na equidade social um de seus objetivos.
5. Na perspectiva de uma agricultura culturalmente apropriada, o desenho dos sistemas produtivos deve se feito a partir de uma análise criteriosa dos agroecossistemas. Variedades locais, fatores edafoclimáticos e cosmovisão dos agricultores devem ser determinantes neste desenho. A tese de que a unidade produtiva deve se organizar a partir das demandas do mercado, tão presente no cotidiano da agricultura, rompe esta lógica e inverte prioridades.
6. A possibilidade do protagonismo do agricultor familiar na organização do seu processo produtivo é um elemento básico no resgate do prazer e do orgulho de ser agricultor, e na conseqüente elevação de sua auto-estima. Estruturas de certificação policialescas, presentes no dia a dia do Movimento de Agricultura Orgânica, onde o agricultor e suas organizações devem se submeter a fiscalizações que irão determinar a veracidade de suas afirmações é, no mínimo, uma incoerência.
A DISPUTA POR UM CONCEITO
A percepção que temos sobre o momento atual é que vivemos uma fase de disputa dentro do Movimento de Agricultura Orgânica. Saímos de um momento em que um conjunto de princípios e valores norteava a construção deste movimento para uma situação onde o poder de sedução do mercado erodiu boa parte destes mesmos princípios.
Muitos de nós não estamos satisfeitos com estas mudanças ocorridos dentro deste Movimento e buscamos uma forma de manter vivos os princípios e valores que permearam sua construção.
Por outro lado, a demanda por produtos limpos tem feito com que estruturas de Mercado, que não possuem compromisso com estes princípios, se incorporem ou se relacionem cada vez mais com o Movimento, tornando ainda mais nítido o distanciamento entre seus princípios originais e muitas de suas práticas atuais .
Podemos ainda observar que mesmo entre aqueles que mantém uma postura retórica onde afirmam que a Agricultura Orgânica não pode se desvincular de seus princípios originais, encontramos os que acabam se deixando levar pela sedução do mercado.
Muitas vezes, mesmo que se defenda um modelo de Agricultura Orgânica vinculado aos princípios iniciais, muitos não encontram o referencial técnico ou metodológico que permita uma práxis coerente com estes princípios. Sendo assim, não se trata apenas de escolher uma opção dentro desta disputa que aqui podemos sintetizar como sendo entre a Agricultura Orgânica e a Agricultura Orgânica de Mercado. Trata-se, sim, de aferir permanentemente se o conjunto de práticas com o qual nos envolvemos apontam para o sentido de atendermos aos objetivos que nos propomos. Caso não atenda não devemos ter receio de buscar e propor o novo.
Se tivermos como motivação principal a produção limpa para um mercado diferenciado, então práticas de substituição de insumos, como controle de pragas (biológico, natural), utilização de adubos naturais ou erradicação de ervas daninhas são pertinentes.
Se nossa motivação é o re-desenho de agroecossistemas com a incorporação de valores ambientais, então é importante pensarmos na natureza como nossa matriz tecnológica. Nesta perspectiva, o restabelecimento de equilíbrios tróficos, dos ciclos de nutrientes, e o manejo da sucessão vegetal são indispensáveis.
Não é apenas no campo tecnológico que as opções feitas levam a corroborar determinado enfoque dentro do movimento. Também na hora de se posicionar frente ao mercado as opções nos situam em determinado campo desta disputa. E estas opções são fundamentalmente duas. Ou o produto orgânico circula nos canais já estabelecidos ou busca-se a construção de canais alternativos para a circulação destes produtos. Em termos práticos pode-se ter como estratégia de comercialização as grandes redes de supermercados, e se submeter a trabalhar sob práticas que estimulam a obscuridade, a competição, o anonimato e beneficiam a grupos específicos. Se as estratégias são feiras livres ou grupos de consumidores organizados, então o estimulo será à transparência, à solidariedade, ao reconhecimento entre os agentes participantes, ao benefício compartilhado entre os envolvidos.
Muitos outros exemplos podem ser evocados para elucidarmos ainda mais a disputa entre os partidários da Agricultura Orgânica e aqueles que trabalham sob a ótica da Agricultura Orgânica de Mercado, mas acreditamos já ter deixado claro nossa leitura do momento que atravessamos.
Obviamente temos a percepção da arbitrariedade deste tipo de análise. Sabemos também que a realidade se mostra multifacetada e que a coerência da opção dos distintos atores envolvidos com Agricultura Orgânica raramente se mostrará apenas a partir da análise que aqui fizemos sucintamente. Ainda assim julgamos oportuno este intento de visualização das práticas e valores envolvidos em um ou outro campo desta disputa. Pode colocar mais nitidez em nosso entendimento sobre a conjuntura que atravessamos no seio do movimento e facilitar nossas opções.
Dom Pedro de Alcântara, junho de 2001.
[1] Este artigo é adaptado a partir de um outro denominado "Produto Orgânico ou Produto Ecológico?", não publicado e divulgado apenas no site do Centro Ecológico.
[2] Engenheiro Agrônomo. Coordenador do Centro Ecológico de Ipê, ONG que há 15 anos assessora agricultores em Agricultura Ecológica.
[3] Pesquisador Inglês, que a partir das observações feitas sobre a agricultura indiana escreveu o livro An Agricultural Testament, editado em 1940, na Inglaterra.
[4] Quanto a oportunidade do termo “movimento” neste contexto, ver: Merrill, Margaret C. Eco-Agriculture: a review of its history and philosophy. Biological Agriculture and Horticulture, 1983, vol. 1